Identidade de um povo
Na sequência de um texto que publiquei, em 5 de Outubro último, no Jornal de Angola e ainda no contexto da análise dos eixos de força para a situação colonial em África, decidi agora debruçar-me sobre “a dominação imposta por uma minoria estrangeira, ‘racial’ e culturalmente diferente, em nome de uma superioridade racial (e ou étnica) e cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autóctone materialmente inferior”. Tal como anteriormente, serviram-me de suporte as análises de George Balandier (etnólogo, antropólogo e sociólogo francês) e de Guy Rocher (sociólogo canadiano), que, sobre a questão em jogo, permitiram-se reflectir mais maduramente sobre os processos da colonização portuguesa, onde também se insere um “conjunto de pseudo-justificações de comportamentos estereotipados”.
As principais motivações para a elaboração deste texto devem-se ao facto de, no próximo mês, Angola comemorar (para mágoa de alguns nostálgicos), o seu 41º aniversário da Independência e de, este ano, se completarem 180 anos, desde a data em que, oficialmente, foi abolido o tráfico de escravos nas colónias portuguesas (10 de Dezembro de 1836). Como refere o preâmbulo do decreto: “o infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história das Nações modernas (...). Emendar pois o mal feito, fazer com que mais se não faça, é dever da honra portuguesa, e é do interesse da Coroa de vossa majestade”. Mas, apesar de o ano de 1836 ser um marco de referência para os legisladores, só entre 18451848 se começaram a sentir os efeitos da sua aplicação prática. Como refere Valentim Alexandre, a partir do tratado anglo-português de Julho de 1842, “o tráfico passava a ser um contrabando perigoso para os traficantes, i.e., para a maioria dos comerciantes e das casas das grandes mestiças das praças de Luanda e de Benguela e para aqueles seus clientes que se atrevessem a correr os riscos de forçar o ‘bloqueio’ naval”.
Mas, como contrabandeando se ganhava mais, do que quando o comércio de escravos era feito sob cobertura legal, o tráfico negreiro aumentou consideravelmente até à primeira metade do século XIX, até que a Lei brasileira de 4 de Setembro de 1850 (também conhecida por Lei Eusébio de Queirós), passou a considerar a importação de escravos para o Brasil também como acto de pirataria. Curiosamente, Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, magistrado, ministro da Justiça (18481852) e autor da lei que, no Brasil, proibiu o tráfico negreiro, nasceu em São Paulo de Luanda (reino do Ndongo), em 1812 e faleceu no Rio de Janeiro, em 7 de Maio de 1868. O seu avô e o seu pai exerceram ambos, em Luanda, os cargos de ouvidor-geral da Comarca de Angola. Porém, o capitão-general de Angola, Nicolau Castelo Branco, prevendo a abolição do tráfico negreiro, relatava o seguinte, através do ofício nº 49, de 23 de Fevereiro de 1825:
“Caberá agora aqui dar a Vª Ex.ª uma segurança absoluta de que, no dia da abolição do comércio da escravatura, deve a nossa Nação considerar como impossível e inútil a sua conservação nestes domínios; impossível, porque sem os direitos da escravatura não se poderá por maneira alguma manter um corpo de tropas e pagar aos empregados públicos; e inútil porque desde então, além do marfim e de uma pouca cera não haverá mais género algum de exportação, e sem dúvida Angola ficará reduzida às mais desvantajosas circunstâncias daquelas em que se acha S. Tomé, de onde desapareceram os brancos, tendo ainda aquele país a vantagem da produção do café, que apenas principia a ter Angola, unicamente no distrito de Encoge”.
Isabel Castro Henriques, num texto intitulado “A Rota dos Escravos. Angola e a rede do comércio negreiro (séc. XV a XIX)” refere que “o juízo sobre os Africanos é anterior à sua banalização e apoiase em preconceitos somáticos, alguns dos quais, como a denúncia dos narizes achatados, se encontra já na Bíblia”. Os negros, ao não se coadunarem com os padrões europeus de beleza, passavam a ser associados ao infortúnio, à tristeza, à cor dos diabos no inferno.
Nos textos de Gomes Eanes de Zurara, como refere ainda Isabel Castro Henriques, os negros encontram-se totalmente arredados dos valores e das formas das espécies humanas: “Essas ‘coisas’ não podem ser integradas na espécie humana, visto apresentarem formas de parentesco com as figuras diabólicas, não pertencendo nem ao céu, nem à terra, mas sim ao ctónico, ao subterrâneo, onde habitam desde sempre as forças diabólicas. A nudez seria, na lógica dos Portugueses, a prova complementar mas suficiente deste carácter diabólico, pois Deus marcou com pêlos aquelas partes que o homem deve cobrir.” Também, o dramaturgo Gil Vicente, quando descrevia camponeses feios, dotava-os de peles escuras e narizes grosseiros. Dedicou uma peça a uma certa “Maria Parda”, sendo “pardo” a expressão extraída do mundo animal – ao remeter para a pele das éguas – que passou a ser também utilizada para designar tanto os mestiços como os ameríndios. Do catálogo dos muares surgiu também o termo “mulato”, para referenciar o mestiço descendente da relação entre negro e branco.
Quanto à origem do termo “mulato”, segundo José Ramos Tinhorão em “Os negros em Portugal; Uma presença silenciosa”, está relacionada com o macho da mula, “o animal híbrido e estéril no mesmo género, proveniente do cruzamento de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. A extensão dessa designação aos descendentes de brancos e negros deve ter tido porém origem não apenas no facto de tais mestiços humanos resultarem também de um cruzamento de raças, mas de os cavalos e muares serem comummente baios, ou de cor castanha de tonalidade próxima do pardo da pele humana (…)”. Pessoalmente, sou ainda do tempo em que os negros dificilmente saíam à rua em Portugal, sem serem devidamente “acarinhados”. Na melhor das hipóteses, logo pela manhã, pelo “ó pretinho dá cá um gosto, para me dares sorte (…)”. Na forma mais contundente pelo “ó preto vai mas é para a tua terra, pá!!”.
Hoje, com a passagem de muitos estudantes africanos e de muitos jogadores de futebol negros e mestiços (africanos ou não)… parece que a diabolização deu lugar a um maior sentido de alteridade e, com surpresa e não menos admiração, já vi até no Rossio, pequenos grupos de políticos e intelectuais a solidarizarem-se com as causas sociais, ideológicas e até partidárias de diferentes grupos de angolanos, sem, aparentemente, olharem para o maior ou menor grau de melanina. Claro que, com isto, não quero dizer que deixou de haver racismo em Portugal, quando até, em outras partes do mundo, como nos EUA, recrudesceram os conflitos raciais.
Contudo, não posso, paralelamente, deixar de reflectir sobre uma constatação do já falecido poeta, diplomata e professor da Universidade do Minho, Luís Gaspar da Silva, também membro fundador do Partido Socialista Português, no seu livro “Utopia seis destinos”, editado em 1997, pela Quatro Margens Editora. Referia Gaspar da Silva, a propósito das várias acções de carácter diplomático a desenvolver, que, no domínio da Sociologia, haveria a necessidade de “(…) fazer desaparecer definitivamente a ideia reaccionária de que o africano não é completamente normal, mas pode ser assimilado.”
Sendo a identidade de um povo o seu principal garante de soberania, como afirmava Oswaldo Serra VanDúnem, ex-embaixador de Angola em Portugal, é claro que a aculturação não deixa, para todos nós, de ser motivo de especial preocupação, quando já se passaram mais de 40 anos sobre a data da independência de Angola.