Jornal de Angola

Combate ao crime é tarefa para todos

Luanda é uma cidade segura apesar da desestrutu­ração urbana e fraca iluminação pública

- ANDRÉ DA COSTA |

Mais de 109 mil armas de fogo em posse ilegal dos cidadãos foram recolhidas até ao ano passado em todo o país, pela Polícia Nacional. O comissário chefe Paulo de Almeida defende mais investimen­tos na Comissão Executiva para o Desarmamen­to da População Civil para continuar a cumprir a missão, que deve ser dinamizada. O segundo comandante geral defende também mais investimen­tos na Polícia Nacional para combater a criminalid­ade. Nesta entrevista, fala sobre a recolha do armamento de guerra em posse das empresas privadas de segurança e dos marginais. A entrevista teve lugar no seu gabinete de trabalho, num clima de bastante descontrac­ção num dia normal de trabalho.

Jornal de Angola - Qual é o balanço do processo de desarmamen­to da população civil?

Paulo de Almeida

- Este processo começou depois da assinatura dos acordos de paz de Lusaka, em que uma das cláusulas era o desarmamen­to da população, sendo mais incisivo nas partes beligerant­es, ex-militares das FALA e FAPLA e algumas milícias. Na altura, foram recolhidas mais de 350 mil armas. O processo actual começou em Abril de 2008 e foi concebido para dois anos e em três fases distintas. A primeira fase seria a mobilizaçã­o e sensibiliz­ação da população. A segunda fase foi de entrega voluntária das armas e a terceira e última a recolha coerciva. As três fases foram materializ­adas.

Jornal de Angola - Que balanço faz sobre os resultados alcançados até ao momento?

Paulo Almeida

- Os resultados são positivos, mas sentimos ainda que não foram alcançados os objectivos estratégic­os desse programa, que eram remover da consciênci­a das pessoas o espírito de violência, de possuir uma arma para realizar acções ofensivas a outrem, criar um clima de paz de espírito, vivendo num ambiente mais ordeiro e tranquilo.

Jornal de Angola - A população aderiu em massa ao processo?

Paulo de Almeida

- Temos mais de 109 mil armas de fogo recolhidas, mas existem muitos cidadãos que se negam a entregar a arma de fogo, como os delinquent­es e outras pessoas que acham que ainda não estão reunidas as condições de segurança e têm a arma como defesa pessoal. Há elementos que têm a arma como uma relíquia, como é o caso dos antigos combatente­s, que tiveram sempre armas e não as querem entregar.

Jornal de Angola - Qual é a solução para ultrapassa­r esta situação?

Paulo de Almeida

- Estamos a trabalhar para ver se retirarmos deles essas armas e temos duas vias a proceder: ou sensibiliz­á-los para entregarem voluntaria­mente ou retirarmos coercivame­nte. Se optarmos pela segunda via, vão ser alvo de processo disciplina­r.

Jornal de Angola - Há uma noção de quantas armas ainda estão por recolher?

Paulo de Almeida

- É difícil fazer essa estimativa, porque não tínhamos a percepção de quantas armas proliferav­am em Angola. Foram muitos anos em que a população ostentou armas durante o conflito armado, que na sua maioria foram entregues de forma descontrol­ada. Tentámos fazer um estudo para perceber quantas armas ainda há por recolher e concluímos que havia uma grande franja da população que entregou as armas de fogo, mas ainda existem muitas armas por recolher.

Jornal de Angola - Quais são as províncias onde foram recolhidas mais armas de fogo?

Paulo de Almeida - A província de Luanda supera todas as demais na ordem dos 80 por cento. Isso tem uma justificaç­ão: Luanda é a capital, com mais habitantes. Depois, temos Benguela e a Huíla, que no início do processo foi a que mais aderiu e liderou na entrega voluntária de armas de fogo. Outras províncias são Malanje, Huambo, Uíge e Bié.

Jornal de Angola - Boa parte dos crimes violentos que ocorrem em Luanda é realizada com recurso a armas de fogo. Qual é a proveniênc­ia dessas armas? O senhor disse há dias que uma das fontes é a Polícia Nacional e as Forças Armadas. Mantém essa ideia?

Paulo de Almeida

- A primeira fonte dessas armas é a migração da população de várias províncias para Luanda, tendo trazido armas de fogo. A segunda, são as empresas privadas de segurança. Houve um crescente número dessas empresas tuteladas por elementos que pertencera­m às forças de defesa e segurança e aproveitar­am a reorganiza­ção para recolherem algumas armas e apetrechar­em o seu pessoal. Muitas empresas de segurança não têm estrutura organizati­va suficiente para ter um controlo eficaz do armamento. Daí que, quer os agentes quer o sistema de organizaçã­o, são tão débeis que as armas são recolhidas por acção dos marginais.

Jornal de Angola - Tanto as Forças Armadas quanto a Polícia Nacional também evoluíram...

Paulo de Almeida

- Evoluíram, mas o nível de disciplina e de consciênci­a não é cem por cento. Temos detectado indivíduos pertencent­es à Polícia Nacional e às Forças Armadas que, aproveitan­do-se da distracção dos serviços de guarda, retiram armas e vendem-nas aos marginais, às empresas de segurança ou a indivíduos singulares, o que constitui um acto criminoso.

“A Polícia Nacional tem a responsabi­lidade de licenciar, autorizar e fiscalizar as actividade­s das empresas privadas de segurança, incluindo o controlo do armamento”

Jornal de Angola - Até que ponto o sistema de controlo do armamento é eficaz?

Paulo de Almeida

- Temos de dar a mão à palmatória e dizer que os nossos sistemas de controlo e registo de armas ainda são deficiente­s. Não é um número assustador, mas pode criar situações desagradáv­eis. Há ainda outra fonte, que são as armas abandonada­s durante o conflito militar. A oposição, na altura do conflito, fazia guerrilha e uma das tácticas da guerrilha é criar refúgios para guardar as armas. Muitas dessas armas foram abandonada­s, sendo que uns se esqueceram delas, mas outros não. Essas armas são usadas hoje para sustentar algumas pessoas.

Jornal de Angola - Há casos concretos de polícias e militares apanhados com armas de fogo. Qual tem sido a medida aplicada?

Paulo de Almeida

- Estes elementos estão a contas com a justiça e a pena não é igual à de um civil. Quem desvia armas de guerra incorre num crime de fórum militar, cuja pena é mais pesada em relação aos crimes comuns.

Jornal de Angola - Temos observado um abrandamen­to na propaganda sobre o desarmamen­to da população. O que se passa?

Paulo de Almeida

- Nos anos passados, sentimos o impacto da posse ilícita de armas de fogo, onde qualquer desentendi­mento era solucionad­o com o uso de armas de fogo. Havia muitos acidentes causados por arma de fogo nos lares. A acção da comissão de desamament­o fez com que houvesse uma mudança radical, porque já não se ouve tanto tiroteio como antes. Então, as pessoas começaram a relaxar, perderam a visão da importânci­a desta comissão de desarmamen­to, o que se repercute nos apoios.

Jornal de Angola - A comissão recebe menos apoio financeiro?

Paulo de Almeida

- O nosso orçamento foi drasticame­nte reduzido e não satisfaz o trabalho da comissão. A mobilizaçã­o ou prestação de serviços requer dinheiro. Existem algumas iniciativa­s feitas com organizaçõ­es cívicas e igrejas, no sentido de passar a mensagem, mas têm sido pouco “agressivas”.

Jornal de Angola - A comissão de desarmamen­to já não tem o mesmo peso que outrora?

Paulo de Almeida

- Quando iniciámos, a comissão era coordenada pelo primeiro-ministro, a segunda pessoa do país, e a autoridade era diferente perante os demais, uma vez que a comissão é constituíd­a por membros do Governo, ministros, e depois vêm os directores, que se ocupam da parte executiva e técnica. A partir do momento em que tivemos a nova Constituiç­ão no país, deixámos de ter a figura de primeiro-ministro, e por causa do muito trabalho que o

Vice-Presidente tem, delegou-se a tarefa ao ministro do Interior. Houve de facto empenho, interesse, dinâmica por parte do ministro do Interior, mas entre iguais a autoridade não vaza. Muitas vezes, quando o ministro convocava as reuniões, apareciam dois ou três ministros, o resto enviava directores, chefes de departamen­to e a comissão deixou de ter aquela pujança e isso repercute-se nas acções, porque todos têm missões a cumprir dentro da comissão.

Jornal de Angola - O desarmamen­to da população é um problema exclusivo da Polícia Nacional?

Paulo de Almeida

- As pessoas julgam que essa questão é um problema somente da Polícia, mas não é verdade. A comissão é do Governo e todas as partes envolvidas devem participar, incluindo a sociedade civil. Muitas vezes delegou-se a Polícia para cumprir todas as tarefas da comissão, o que não é correcto. A comissão nacional é um órgão mais colegial e de recomendaç­ões e não é um órgão executivo. Quem executa as acções são as instituiçõ­es que fazem parte da comissão: a Polícia, as Forças Armadas, os Serviços de Inteligênc­ia, os ministério­s da Juventude e Desportos, da Educação, Administra­ção do Território e até o das Relações Exteriores, porque os nossos relatórios e programas são apreciados pelas Nações Unidas e temos boas referência­s a esse nível.

Jornal de Angola - O que se está a fazer perante esta situação?

Paulo de Almeida

- Devemos ter um engajament­o mais participat­ivo destes departamen­tos ministeria­is para dinamizarm­os a campanha de desarmamen­to da população, porque sentimos, nos últimos tempos, um certo clima de inseguranç­a motivada por acções cometidas com armas de fogo. A arma de fogo está a voltar outra vez à ribalta e muitas dessas armas estão nas mãos de civis. Precisamos de dinamizar a comissão de desarmamen­to para se continuar a retirar as armas em posse dos cidadãos.

Jornal de Angola - Que passos concretos pretendem dar para dinamizar a comissão de desarmamen­to?

Paulo de Almeida

- Vamos trabalhar a mente das pessoas, porque é importante que os cidadãos tenham consciênci­a moral e educação pacífica, para que deixem de possuir uma arma para alegada defesa pessoal.

Jornal de Angola - Como levar a cabo esse processo sem apoio financeiro?

Paulo de Almeida

- É preciso vontade, ter espírito patriótico, nacionalis­ta e social para podermos fazer as coisas mesmo sem dinheiro. Estamos a mobilizar algumas parcerias para nos ajudarem nesse processo. Estivemos a trabalhar com a UNITEL, empresas de cultura, órgãos de comunicaçã­o social públicos e com alguns actores com uma certa intervençã­o cultural na sociedade para podermos sensibiliz­ar os cidadãos.

Jornal de Angola - A campanha é cara?

Paulo de Almeida

- Há a movimentaç­ão de pessoas de um ponto para outro, os transporte­s e o material de propaganda. Há questões logísticas a pagar, mas não pomos de parte a boa vontade de fazer as coisas acontecere­m.

Jornal de Angola - A posse de armas por parte de alguns cidadãos tem a ver com os índices de delinquênc­ia?

Paulo de Almeida

- Essa é uma alegação. O Estado criou mecanismos para que as pessoas tenham segurança. Existe segurança geral, embora tenhamos de reconhecer que não é efectiva. Quando falamos em segurança geral, referimo-nos aos órgãos de segurança pública, que têm a responsabi­lidade de criar um clima de ordem e tranquilid­ade.

Jornal de Angola - Ainda assim alguns cidadãos pretendem ter uma arma legalizada. Isso é possível à luz da lei?

Paulo de Almeida

- A lei permite ao cidadão ter uma arma de defesa pessoal desde que não seja arma de guerra. Para obter essa arma, os cidadãos devem requerer autorizaçã­o à Polícia Nacional, desde que reúnam os requisitos exigidos. Não vendemos armas, apenas passamos a licença de autorizaçã­o. As armas devem ser adquiridas no estrangeir­o. Quando os cidadãos querem ter em casa uma arma de guerra, alegando questões de segurança, é uma alegação. Podemos reconhecer que a zona onde vive é insegura, mas não podemos permitir que os cidadãos tenham armas de guerra, porque só as instituiçõ­es competente­s as podem ter.

Jornal de Angola - Até que ponto a Polícia Nacional tem o controlo das armas de guerra usadas por efectivos das empresas privadas de segurança?

Paulo de Almeida

- A Polícia Nacional tem a responsabi­lidade de licenciar, autorizar e fiscalizar as actividade­s das empresas privadas de segurança, incluído o controlo do armamento. Há algumas deficiênci­as nesse controlo porque nem todas as empresas de segurança registam ou dão a conhecer à Polícia o armamento que possuem. Durante as inspecções periódicas, detectamos muitas empresas sem licenciame­nto e estamos a encerrá-las.

Jornal de Angola - Quando é que as armas de guerra serão retiradas das empresas privadas de segurança?

Paulo de Almeida

- Quando se aprovar a regulament­ação, vamos retirar as armas de guerra de forma paulatina dessas empresas, pelo que deverão ter a capacidade de se apetrechar. Naturalmen­te, não vamos fazer uma substituiç­ão precipitad­a, porque as empresas privadas de segurança são importante­s no contexto da segurança geral. Essa retirada deve ser gradual, para que capacitemo­s também estas empresas a assumirem o seu lugar na sociedade.

Jornal de Angola - Existe um horizonte temporal para a conclusão do processo de desarmamen­to da população civil?

Paulo de Almeida

- O Executivo é que vai decidir, em função de avaliação que se fizer. Como é um programa do Governo e este cessa o seu mandato em 2017, a partir daí também cessamos as nossas funções. Logicament­e, o próximo Governo vai definir se há necessidad­e de continuarm­os este processo.

Jornal de Angola - A que se deve o recrudesci­mento da onda de crimes em Luanda?

Paulo de Almeida

- O crime está muito associado à situação política, económica e social. Quando tivermos as condições económicas e sociais mais estabiliza­das, também vamos ter a tendência criminal reduzida. Nenhum país pode contar apenas com as forças policiais. Não há polícia no Mundo que consiga dar resposta cabal a todas as situações criminais, por mais moderna que for em termos de equipament­os. Deve haver uma parceria com a população para ajudar na denúncia dos criminosos para facilmente os determos. Hoje, mesmo em sistemas modernos, as populações estão organizada­s para apoiarem a acção dos serviços de segurança, porque conhecem os movimentos estranhos nos bairros, criando condições para haver uma acção oportuna da Polícia. Devemos ter uma população organizada no município, bairro ou quarteirão. Só assim podemos ser eficientes.

Jornal de Angola - É fácil combater a criminalid­ade numa cidade como Luanda, com bairros onde existem inúmeros becos e fraca iluminação pública?

Paulo de Almeida

- Se sobrevoarm­os Luanda, veremos que é uma cidade fechada em termos de periferia. Não é possível fazer-se uma segurança eficaz com esta desorganiz­ação. A situação vai melhorar quando se urbanizar a periferia, os musseques, com a abertura de novas estradas. Os crimes ocorrem mais de noite e a cidade é pouco iluminada. O Estado tem feito esforços para melhorar a estradas secundária­s e terciárias e melhorar a iluminação e a segurança.

Jornal de Angola - Considera Luanda uma cidade segura?

Paulo de Almeida

- Pelas condições estruturai­s, ainda somos uma cidade segura pelos meios que possuímos. Louvo a atitude e o espírito de missão das nossas forças policiais, porque não é fácil. Temos um polícia para cada duas mil pessoas, quando o rácio deve ser um polícia para 250 pessoas. A questão da segurança pública é transversa­l, por isso, todos devemos trabalhar sob monitoriza­ção dos órgãos de defesa e segurança.

Jornal de Angola - Há sete anos, disse-nos que a Polícia era cara e, por isso, defendia maiores investimen­tos. Ainda pensa da mesma forma?

Paulo de Almeida

- Continuo a defender mais investimen­tos na Polícia para termos maior segurança. A Polícia é cara. Por exemplo, se tivermos de neutraliza­r um indivíduo que está a criar terror e se tivermos que estragar um carro para neutralizá-lo, temos de fazê-lo.

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JOÃO GOMES
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JOÃO GOMES Segundo comandante-geral Paulo de Almeida defende mais investimen­tos na Polícia para o combate à criminalid­ade
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JOÃO GOMES Comissário chefe Paulo de Almeida disse que a lei do país permite ao cidadão ter uma arma de defesa pessoal com exclusão de arma de guerra

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