Jornal de Angola

Clinton precisa de Sanders para transforma­r as Américas

- LUIS ALBERTO FERREIRA |

O 31º Encontro Nacional de Mulheres, na cidade argentina de Rosário, aglutinou cerca de 70 mil participan­tes do sexo feminino. A Polícia, num acto digno dos piores momentos da ditadura fascista de Videla, carregou, à bastonada, sobre as mulheres. A mesma indignidad­e havia sido cometida, alguns dias antes, em Mar de la Plata. Temos, pois, de regresso, uma das versões regimentai­s que da história da Argentina conhecemos. Isto acontece num momento em que no país as mulheres se decidiram pela discussão pública de problemas tão graves quanto o aborto, a prostituiç­ão, a violência doméstica. Ao mesmo tempo, no vasto tabuleiro das Américas outros acontecime­ntos ganhavam dimensões de interesse planetário. Por um lado, a atribuição do Nobel da Paz ao Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, consequênc­ia da sua aplicação na defesa de um acordo definitivo com as guerrilhas populares das FARC e do ELN. Processo em que além de Cuba toma parte, agora, o Governo do Equador, desta feita para facilitar as conversaçõ­es entre o Governo da Colômbia e o ELN, movimento guerrilhei­ro independen­te das FARC. Por outro lado, sobressai a intervençã­o do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em solo da Turquia, no decurso da Cimeira Energética destinada a reunir consensos sobre a produção e os preços do petróleo. Oportunida­de que o controvers­o Presidente da Turquia, Recep Erdogan, não subestimou, ao anunciar o seu propósito de se deslocar à Venezuela em visita de Estado. Quer tudo isto, mas não só isto, dizer que vai mudando o perfil do tempo especulati­vo concedido, dentro e fora dos Estados Unidos, às candidatur­as de Hillary Clinton e Donald Trump. Os Estados Unidos não poderão mais dissociar o seu futuro imediato de quanto ocorre, agora, nas Américas e no resto do planeta. Vários pontos de reflexão foram, já, estabeleci­dos. O primeiro gravita na radiografi­a ao magistério de Obama, verbalista, teorizador e improfícuo. O segundo constitui-se fundamenta­l para a chegada “útil” da senhora Clinton à Casa Branca: Bernie Sanders e os 12 milhões de apoiantes democratas que confiaram nele e no seu ideário programáti­co. Este último fautor desafia as possibilid­ades dos democratas na composição das duas câmaras. Sem preponderâ­ncia no Senado, Hillary Clinton seria apenas mais um inquilino constrangi­do da Casa Branca _ e as Américas, na sua globalidad­e, pouco ou nada ganhariam. Bernie Sanders não significa mera alusão simbólica. Inserilo na perspectiv­a de uma Clinton inovadora e anti-sistema é um repto que agrada aos analistas. Os apoiantes de Sanders que votarem em Hillary Clinton fá-lo-ão na expectativ­a de resultados claramente retributiv­os. Eles querem mudanças no país e no relacionam­ento global com as Américas. A maior responsabi­lidade de Hillary consiste, de facto, em transcende­r com novas políticas o que para uma parte dos Estados Unidos e do mundo se revela enigmático ou suspeitoso. A atribuição à Rússia de “cem por cento das culpas” nos bombardeam­entos em curso na Síria levanta uma equação de discutibil­idade próxima do impensável: há o risco de se somar tal asseveraçã­o à furtiva promessa de Clinton - “duplicar a ajuda a Israel”. O que poderia significar o banimento de quaisquer concessões ao “projecto” fundaciona­l de um Estado palestinia­no. Como transforma­r, pois, as Américas, sem transforma­r os Estados Unidos da América do Norte e pôr termo à ingerência nas seis nações realmente dispostas a mudar a ordem continenta­l dos direitos humanos - na educação, na saúde, no apoio às comunidade­s indígenas, na defesa dos recursos naturais? Al Gore, que foi vicePresid­ente no reinado de Bill Clinton e detém um Nobel da Paz pelo seu activismo na defesa do ambiente, começa agora a fazer-se ouvir (ao lado de Clinton). É outra factura retributiv­a à espera da presumível inquilina da Casa Branca.

Os Estados Unidos da América do Norte chegam exaustos a estas eleições presidenci­ais. Com nítida quebra em sinergias do campo social e económico. Sabe-se agora muito mais da trivializa­ção dos direitos dos eleitores, já frustrados quando da fraude, na Florida, que permitiu a George W. Bush um segundo mandato e a consequent­e invasão do Iraque. (“Manobra de diversão”, chamoulhe, na altura, Al Gore). O sistema eleitoral não cessa de causar estranheza­s. Ao candidato presidenci­al que recolha mais votos não é assegurado, automatica­mente, o ingresso na Casa Branca. Há todo um xadrez de minúcias e incongruên­cias federais a envolver o processo. Longe da multidão. Serge Halimi, editoriali­sta do “Le Monde Diplomatiq­ue”, foi conhecer no terreno o que pensam hoje os norte-americanos: “O sistema está viciado” porque “nada muda em Washington”. Porque “uma maioria da população continua a pagar as consequênc­ias de uma crise económica que, por outro lado, nada custou aos que a provocaram”. Porque “os eleitores republican­os também não viram acontecer grande coisa depois de se terem mobilizado para arrebatar, primeiro em 2010 e depois em 2014, o controlo das duas câmaras”. Isto é, Donald Trump, em ruptura “espectacul­ar” com o seu partido e o velho sistema, não é ainda um “desapareci­do em combate”. A propaganda, o triunfalis­mo táctico, tornaram-se fingidiços. Trump, sem perceber que o fazia, e Sanders, consciente de que o fazia, agitaram as águas. Em 1959, a URSS acolheu em Moscovo uma Exposição NorteAmeri­cana. Gabava-se, pouco depois, o historiado­r Kenneth Beer: “Pela primeira vez na história do país, o cidadão médio soviético pôde fazer perguntas sobre os Estados Unidos e obter respostas sinceras, apegadas à realidade”. Uma das perguntas: “Quantos trabalhado­res dos Estados Unidos gozam de serviços médicos?”. Resposta: “Aproximada­mente a quarta parte”. Nesse caso, muito regrediram os Estados Unidos, desde 1959, em matéria de assistênci­a médica igualitári­a. Barack Obama poderia, hoje, questionar o eufórico Kenneth Beer de 1959: “Respostas apegadas à realidade?!!!”.

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