Clinton precisa de Sanders para transformar as Américas
O 31º Encontro Nacional de Mulheres, na cidade argentina de Rosário, aglutinou cerca de 70 mil participantes do sexo feminino. A Polícia, num acto digno dos piores momentos da ditadura fascista de Videla, carregou, à bastonada, sobre as mulheres. A mesma indignidade havia sido cometida, alguns dias antes, em Mar de la Plata. Temos, pois, de regresso, uma das versões regimentais que da história da Argentina conhecemos. Isto acontece num momento em que no país as mulheres se decidiram pela discussão pública de problemas tão graves quanto o aborto, a prostituição, a violência doméstica. Ao mesmo tempo, no vasto tabuleiro das Américas outros acontecimentos ganhavam dimensões de interesse planetário. Por um lado, a atribuição do Nobel da Paz ao Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, consequência da sua aplicação na defesa de um acordo definitivo com as guerrilhas populares das FARC e do ELN. Processo em que além de Cuba toma parte, agora, o Governo do Equador, desta feita para facilitar as conversações entre o Governo da Colômbia e o ELN, movimento guerrilheiro independente das FARC. Por outro lado, sobressai a intervenção do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em solo da Turquia, no decurso da Cimeira Energética destinada a reunir consensos sobre a produção e os preços do petróleo. Oportunidade que o controverso Presidente da Turquia, Recep Erdogan, não subestimou, ao anunciar o seu propósito de se deslocar à Venezuela em visita de Estado. Quer tudo isto, mas não só isto, dizer que vai mudando o perfil do tempo especulativo concedido, dentro e fora dos Estados Unidos, às candidaturas de Hillary Clinton e Donald Trump. Os Estados Unidos não poderão mais dissociar o seu futuro imediato de quanto ocorre, agora, nas Américas e no resto do planeta. Vários pontos de reflexão foram, já, estabelecidos. O primeiro gravita na radiografia ao magistério de Obama, verbalista, teorizador e improfícuo. O segundo constitui-se fundamental para a chegada “útil” da senhora Clinton à Casa Branca: Bernie Sanders e os 12 milhões de apoiantes democratas que confiaram nele e no seu ideário programático. Este último fautor desafia as possibilidades dos democratas na composição das duas câmaras. Sem preponderância no Senado, Hillary Clinton seria apenas mais um inquilino constrangido da Casa Branca _ e as Américas, na sua globalidade, pouco ou nada ganhariam. Bernie Sanders não significa mera alusão simbólica. Inserilo na perspectiva de uma Clinton inovadora e anti-sistema é um repto que agrada aos analistas. Os apoiantes de Sanders que votarem em Hillary Clinton fá-lo-ão na expectativa de resultados claramente retributivos. Eles querem mudanças no país e no relacionamento global com as Américas. A maior responsabilidade de Hillary consiste, de facto, em transcender com novas políticas o que para uma parte dos Estados Unidos e do mundo se revela enigmático ou suspeitoso. A atribuição à Rússia de “cem por cento das culpas” nos bombardeamentos em curso na Síria levanta uma equação de discutibilidade próxima do impensável: há o risco de se somar tal asseveração à furtiva promessa de Clinton - “duplicar a ajuda a Israel”. O que poderia significar o banimento de quaisquer concessões ao “projecto” fundacional de um Estado palestiniano. Como transformar, pois, as Américas, sem transformar os Estados Unidos da América do Norte e pôr termo à ingerência nas seis nações realmente dispostas a mudar a ordem continental dos direitos humanos - na educação, na saúde, no apoio às comunidades indígenas, na defesa dos recursos naturais? Al Gore, que foi vicePresidente no reinado de Bill Clinton e detém um Nobel da Paz pelo seu activismo na defesa do ambiente, começa agora a fazer-se ouvir (ao lado de Clinton). É outra factura retributiva à espera da presumível inquilina da Casa Branca.
Os Estados Unidos da América do Norte chegam exaustos a estas eleições presidenciais. Com nítida quebra em sinergias do campo social e económico. Sabe-se agora muito mais da trivialização dos direitos dos eleitores, já frustrados quando da fraude, na Florida, que permitiu a George W. Bush um segundo mandato e a consequente invasão do Iraque. (“Manobra de diversão”, chamoulhe, na altura, Al Gore). O sistema eleitoral não cessa de causar estranhezas. Ao candidato presidencial que recolha mais votos não é assegurado, automaticamente, o ingresso na Casa Branca. Há todo um xadrez de minúcias e incongruências federais a envolver o processo. Longe da multidão. Serge Halimi, editorialista do “Le Monde Diplomatique”, foi conhecer no terreno o que pensam hoje os norte-americanos: “O sistema está viciado” porque “nada muda em Washington”. Porque “uma maioria da população continua a pagar as consequências de uma crise económica que, por outro lado, nada custou aos que a provocaram”. Porque “os eleitores republicanos também não viram acontecer grande coisa depois de se terem mobilizado para arrebatar, primeiro em 2010 e depois em 2014, o controlo das duas câmaras”. Isto é, Donald Trump, em ruptura “espectacular” com o seu partido e o velho sistema, não é ainda um “desaparecido em combate”. A propaganda, o triunfalismo táctico, tornaram-se fingidiços. Trump, sem perceber que o fazia, e Sanders, consciente de que o fazia, agitaram as águas. Em 1959, a URSS acolheu em Moscovo uma Exposição NorteAmericana. Gabava-se, pouco depois, o historiador Kenneth Beer: “Pela primeira vez na história do país, o cidadão médio soviético pôde fazer perguntas sobre os Estados Unidos e obter respostas sinceras, apegadas à realidade”. Uma das perguntas: “Quantos trabalhadores dos Estados Unidos gozam de serviços médicos?”. Resposta: “Aproximadamente a quarta parte”. Nesse caso, muito regrediram os Estados Unidos, desde 1959, em matéria de assistência médica igualitária. Barack Obama poderia, hoje, questionar o eufórico Kenneth Beer de 1959: “Respostas apegadas à realidade?!!!”.