Jornal de Angola

Nem tida nem achada é descoberta

- FILIPE ZAU |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

A 16 de Novembro de 1868, uma portaria ministeria­l do rei D. Luís aprova a decisão do governador-geral de Angola quanto aos dois filhos do barão de Cabinda, Manuel José Puna, para serem educados por conta do Estado português, em Lisboa. Martins dos Santos descreve do seguinte modo o barão de Cabinda:

“Mostrou-se sempre muito dedicado a Portugal; deve-se-lhe em boa parte a integração das terras do enclave e distrito de Cabinda no conjunto do património territoria­l português, quando se desenrolou a famosa Questão do Zaire. Ele próprio havia sido educado no Rio de Janeiro a expensas do Governo de Portugal, já depois da independên­cia do Brasil, o que aconteceu com outros naturais de Angola. Deslocou-se a Lisboa, em visita aos filhos, talvez em 1871, tendo sido gentilment­e hospedado pelo monarca. Recebeu o baptismo na capital portuguesa, apadrinhan­do o acto o rei D. Luís e a rainha D. Maria Pia.”

De seguida, a 3 de Dezembro desse mesmo ano, uma outra portaria ministeria­l comunicava que os dois educandos já haviam chegado a Lisboa e sido confiados a um dos melhores estabeleci­mentos do ensino particular da capital portuguesa, a Escola Académica. “Mais tarde regressara­m à sua terra [em Cabinda] e exerceram as funções de professore­s do ensino primário. Um deles, Vicente Puna, mostrou possuir qualidades aceitáveis, ao contrário do irmão, João Puna, cujo comportame­nto mereceu críticas e até castigos.”

Também na segunda metade do século XIX, um artigo publicado no “Jornal do Comércio”, da autoria de Ribeiro Guimarães, embora optasse por privilegia­r apenas o pitoresco, deixa escapar, segundo Luís Ramos Tinhorão, “o preconceit­o de classe do observador (homem branco cuja posição de jornalista pressupunh­a uma vinculação à cultura de elite) ”. Relata aspectos relevantes da cultura do Kongo, em Lisboa, um reino africano que, a partir da intervençã­o portuguesa no processo político local, passou a ser instituído com excesso de figuras da corte, a título de exemplo: príncipes, regentes, duquesas, condessas, aias, procurador­es…

Segundo o cronista Rui de Pina, em finais do século XV, “era desejo do rei do Congo ter coisas como as do reino de Portugal”. A opção por um paradigma institucio­nal de governação europeia, associado às pressões das invasões dos guerreiros Jagas e à dos comerciant­es de escravos de São Tomé, acabara por contribuir para um processo de decadência do reino do Kongo até à perda da sua autonomia política, no século XVIII, a favor do reino português.

A crónica de Ribeiro Guimarães, em finais do século XIX, intitulada “O Congo em Lisboa”, referia o seguinte: “Ontem se verificou o primeiro baile, no paço real da Floresta, dado pela princesa Sebastiana Júlia, regente do reino do império do Congo. Foi muito concorrido pelos brancos, e a pretaria estava esplêndida. A Princesa tinha o seu trono no palco, e aí estava cercada pela corte, composta por duquesas, condessas e aias, e com sua guarda real, de alabardas./…/ Depois da meia-noite, saíram os convidados, que haviam pago os seus bilhetes de entrada, e ficaram só a princesa e a sua corte, os seus súbditos e súbditas, e alguns brancos. Então a princesa desceu do trono, e dignou-se a dançar com o príncipe regente a dança nacional do Congo, com muita gravidade. / E a princesa Sebastiana uma guapa preta, muito airosa e esbelta. / A pretaria dançou a sua dança do Congo, e outras danças da Europa. /Acabou o baile às três horas da madrugada.”

O tom de bom humor adoptado por Ribeiro Guimarães neste artigo de jornal, não deixa de procurar evidenciar uma aparente ingenuidad­e da diáspora africana em Lisboa, na sua quase exclusivid­ade escrava ou liberta que, até 1761, altura em que o marquês de Pombal decretou a proibição de entrada de escravos em Portugal, era provenient­e de portos da costa ocidental de África, designados como: Arguim, Cabo Verde, Bezeguiche, Cacheu, São Domingos, Mina, Arda, Ajuda, Cabinda, Luanda, Benguela... Algumas poucas fontes referem-se também a escravos do Kongo, de Angola ou ainda de Moçambique, estes últimos já capturados na costa oriental de África. “A menção precisa de uma etnia é relativame­nte rara na documentaç­ão consultada”. Porém, segundo Didier Lahon, os escravos que pertencem a etnias do “grupo linguístic­o bantu constituem, provavelme­nte, o maior contingent­e de escravos introduzid­os em Portugal, até 1761.”

Escravos houve que, independen­temente de terem aprendido um ofício qualificad­o com o seu proprietár­io, “ao ponto de algumas corporaçõe­s (…) terem proibido o acesso a certas ocupações ou profissões”, aprenderam também a “ler, escrever e contar, bem como ainda a falar bem inglês, francês, espanhol ou italiano, por terem acompanhad­o os seus senhores em longas temporadas no estrangeir­o”. Outros tornaram-se bons executante­s de instrument­os musicais, como de flauta transversa ou doce e também de rabeca. A necessidad­e de convívio e de recreação era reconhecid­amente um aspecto cultural relevante para a diáspora africana em Portugal.

Há sem dúvida alguma, em finais do século XIX, duas posturas diferencia­das em relação a nativos de um mesmo continente, só explicadas pelos interesses em jogo em um determinad­o momento específico.

Tudo isso, porque nestas coisas da investigaç­ão científica, tropecei na história do meu próprio avô, António Thiaba da Costa, Governador de Massabi, que, com uma cruz (tal como a grande maioria das autoridade­s tradiciona­is da época), foi, em 29 de Setembro de 1883, um dos assinantes do Tratado de Chinfuma, em representa­ção da Rainha Samano e a 26 de Dezembro de 1884, já como capitão de 2ª linha, do Tratado de Chicamba.

Discutia-se na Europa a partilha de África, de acordo com os interesses das potências coloniais, assinantes da Conferênci­a de Berlim (19841985) e, para a qual, a parte africana não foi tida nem achada.

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