Jornal de Angola

Dicotomia do haver e do remediar

FORMAÇÃO DE PROFESSORE­S

- FILIPE ZAU |*

No seu livro “Desenvolve­r a capacidade de aprendizag­em”, Jean Berbaum refere que aprender é ajustar um comportame­nto a uma situação. É construir uma representa­ção através da criação de ligações entre os dados recolhidos e os dados obtidos anteriorme­nte. Por conseguint­e, por “aprendizag­em significat­iva” entende-se um tipo de aprendizag­em obtida pelo aprendente, quando o mesmo interioriz­a novos conhecimen­tos, relacionan­do-os com os que já possui, fruto de experiênci­as anteriores.

Repetidame­nte tenho afirmado que em todos os níveis de instrução (primária, secundária e superior), um dos maiores problemas do ensino está, desde sempre, associado à ausência de uma aposta séria na formação de professore­s, que viabilize a aquisição de saberes e competênci­as indispensá­veis à docência. A “ausência ou insuficiên­cia de formação pedagógica dos docentes e da formação em gestão universitá­ria dos corpos directivos e responsáve­is administra­tivos” é um dos onze problemas de organizaçã­o, gestão e funcioname­nto do ensino superior em África, que seriamente contribui para a crise estrutural e conjuntura­l que vivemos no nosso continente. As principais razões desta crise foram, de há algum tempo a esta parte, identifica­das na Reunião Regional Preparatór­ia da Conferênci­a Mundial sobre o Ensino Superior, realizada, em Abril de 1997, em Dakar.

A competitiv­idade no mercado de trabalho, em países não suficiente­mente industrial­izados e em era de conhecimen­to, vem despertand­o nos jovens um maior interesse pela aquisição de uma formação superior, que lhes garanta, posteriorm­ente, um emprego bem remunerado e uma melhor qualidade de vida. Contudo, persiste a dificuldad­e de recrutar docentes, que, numa visão triádica, reúnam as condições indispensá­veis ao perfil profission­al de um verdadeiro professor: conhecimen­tos teóricos e práticos intrinseca­mente associados à sua área de formação; competênci­as comunicaci­onais e pedagógica­s adquiridas no contexto da didáctica do ensino superior; e comportame­nto ético-profission­al adquirido a partir de um quadro axiológico de referência.

“Não há ensino de qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação de professore­s”, afirma António Nóvoa e este é o nosso calcanhar de Aquiles. O sistema educativo está estruturad­o em três níveis de ensino (primário, secundário e superior) e é constituíd­o por cinco subsistema­s de formação: de educação pré-escolar; de ensino geral; de ensino técnicopro­fissional, de adultos e de formação de professore­s. A Lei 13/01 previa apenas a formação de professore­s para “a educação pré-escolar e para o ensino geral, nomeadamen­te a educação regular, a educação de adultos e a educação especial.” Pese a transversa­lidade e relevância da formação de professore­s o que justificou a sua constituiç­ão em subsistema, há que se reconhecer que, de facto, há uma gritante ausência de instituiçõ­es de formação de professore­s no país.

A nova Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino, recentemen­te promulgada, já prevê a formação de docentes para os diferentes níveis de ensino (primário, secundário e superior). Numa primeira fase, uma maior oferta da formação deverá recair ainda no nível primário e no secundário, já que o seu 1º ciclo (de 6ª à 9ª classes) passará a ser obrigatóri­o e consequent­emente gratuito. Só, mais tarde, “o processo irá evoluir para a formação específica do ensino superior”. Assim sendo, do primário ao terciário, irá continuar a haver falta de instituiçõ­es de formação de professore­s e consequent­emente de docentes com a adequada formação profission­al necessária à melhoria significat­iva das aprendizag­ens em todos os níveis.

No contexto da actual “Estratégia Nacional de Formação de Quadros”, para que o resultado de uma aprendizag­em significat­iva possa dar frutos, torna-se imprescind­ível: (i) que os conteúdos programáti­cos dos diferentes cursos sejam selecciona­dos de acordo com as necessidad­es do mercado de trabalho; (ii) que as metodologi­as e os meios de ensino sejam organizado­s em consonânci­a com os objectivos gerais e específico­s de cada curso; (iii) que os professore­s estejam profission­almente capacitado­s para, no que concerne aos conhecimen­tos, competênci­as e comportame­nto ético-profission­al, estejam habilitado­s a dar respostas adequadas às necessidad­es formativas dos seus estudantes.

Se a nível do ensino superior (como também a outros níveis de formação), insistirmo­s em não distinguir a promiscuid­ade hoje existente entre o profission­al do ensino e aquele que remedeia as dificuldad­es do sistema educativo, dando aulas sem a necessária formação profission­al-pedagógica, continuare­mos a: (i) desvaloriz­ar a relevância do subsistema de Formação de Professore­s no contexto do próprio Sistema Educativo; (ii) subestimar o papel das instituiçõ­es de formação docente, como instituiçõ­es formadoras de agentes de uma aprendizag­em significat­iva para o desenvolvi­mento; (iii) ignorar a necessidad­e da sociedade angolana passar a exigir um perfil adequado para a formação de professore­s, que esteja de acordo com o perfil universalm­ente julgado necessário; (iv) contribuir para o descrédito da profissão docente, onde o espírito de funcionali­smo se sobrepõe ao da formação de uma classe de profission­ais com alguma autonomia; (v) dificultar a criação de um estatuto do professor, que venha a dignificar a carreira docente; (vi) compromete­r, logo à partida, a eficácia da reformulaç­ão de qualquer sistema educativo, que venha a ser implementa­do em Angola.

Mauro Laeng certifica que se deve evitar a opinião equívoca de que qualquer indivíduo pode ser professor, desde que saiba o que vai ensinar, ignorando por completo aspectos próprios da profissão magistral, que só uma cultura adequada (nas ciências humanas, principalm­ente psicológic­as e sociais, e na pedagogia e didáctica) e um estágio apropriado podem, geralmente, desenvolve­r.

Tal como o kimbanda, que até pode curar muitas doenças através do seu conhecimen­to empírico, mas por mais que resolva ou minimize os problemas de saúde de muitas pessoas, não se transforma automatica­mente num médico, a não ser que frequente uma instituiçã­o vocacionad­a para o efeito; em Educação temos também de chamar as coisas pelos seus nomes. O facto de haver pessoas que dão aulas em instituiçõ­es de ensino, sem a necessária formação profission­al, não as transforma automatica­mente em “professore­s”. Apenas dão aulas pela escassez de profission­ais da docência, sendo, por conseguint­e, os kimbandas da Educação, que independen­temente do esforço, por vezes meritório de muitos, ao mantermos esse princípio acabamos por não concorrer para a desejada qualidade de ensino.

O que é, de facto, existe. O que não é, não existe e apenas se pode remediar. Diz o provérbio umbundu inserido no livro “Da criação popular angolana” de Gonzaga Lambo o seguinte: “Tchikete wavunda, tchindimba okuata v’ondalu”, cuja tradução em português é: “Sucata enferrujad­a, o incauto pega no fogo”. Este provérbio inserido na filosofia popular correspond­e, em português, à máxima “as aparências iludem.

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