Jornal de Angola

Limpeza pública em Luanda

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A campanha permanente, entre nós, contra a malária, com sucessivos conselhos à população, sobre a importânci­a do cumpriment­o diário de uma série de medidas, tem contribuíd­o para a doença não atingir proporções ainda maiores em Angola.

Entre as medidas dos organismos oficiais conta-se o apelo à colocação correcta do lixo - em sacos devidament­e fechados em contentore­s destinados ao efeito, cujas tampas não devem nunca ser deixadas abertas.

A intenção é boa, o princípio correcto, mas insuficien­te, para não dizer improfícuo, se não formos todos nós a colaborar de forma consciente e efectiva neste combate a uma doença que continua a ceifar diariament­e milhares de vidas em todo o Mundo e permanece um flagelo no limiar do século XXI, quando visitas à Lua deixaram de ser sonho de cientistas e a Marte se apressam em breve a tornar-se igualmente “corriqueir­as”.

O problema da limpeza pública em Luanda - indubitave­lmente o mais grave no país - requer sem dúvida o empenho da população, não apenas no que se refere ao lixo doméstico, mas igualmente ao produzido por zungueiros, quitandeir­as, supermerca­dos, restaurant­es e tascas. O que implica, também nestes casos, a “revolução” de mentalidad­es. O que, acentue-se, não é tarefa fácil numa urbe que se transformo­u, pelos piores motivos, numa grande metrópole.

Luanda, concebida no tempo colonial para quinhentos mil habitantes, no máximo, tem hoje cerca de seis milhões e meio. Este descomunal aumento populacion­al deve-se essencialm­ente aos que fugiam da(s) guerra(s) e viram na capital o local mais seguro para sobreviver. Vieram de todo o país, cidades, vilas e quimbos. Em aviões superlotad­os de raivas e lágrimas. Trouxeram costumes diferentes. Instintiva­mente, procuraram mantêlos. Tornaram-se desenraiza­dos. Construíra­m “casas” com o que tinham mais à mão - madeira, chapas, oleados, papelão -, onde procuraram conviver com o medo que traziam pegado à pele e às saudades da paz. Na edificação destes “refúgios” bloquearam ruas e becos, adulterara­m praias e bairros, superlotar­am prédios “tão altos!”, como alguns jamais imaginaram haver. Outros, poucos, acima de tudo crianças órfãs, encontrara­m na rua o agasalho para a solidão.

Os mais idosos olharam a cidade grande com olhos de medo, os mais novos com deslumbram­ento. Na hora de refazer a vida, à falta de um canto de terra para a lavra, muitos dos homens fizeram-se pescadores ou vendedores de rua. As mulheres continuara­m a acarretar água, a ser mães, companheir­as, “zungueiras” sentadas nos passeios como o faziam à beira dos caminhos ou nos mercados.

Luanda, solidária, acolheu-os a todos. Também ela conhecera directamen­te - das outras formas continuava a sofrer - os efeitos da fúria assassina dos inimigos. Angola estava em guerra. A soberania e a integridad­e do país em causa. Muitos dos seus melhores filhos defendiam-na de armas na mão. O Governo, o Exército, a Polícia, as autoridade­s oficiais, tinham como principal objectivo o cumpriment­o da História, uma Pátria una e indivisíve­l. A descaracte­rização da capital era, então, face a todas outras consequênc­ias inevitávei­s de um conflito armado, coisa de somenos, além do mais se tal se devia a acolher irmãos “sem telhado, nem esteira”.

A História cumpriu-se. A Nação mantém-se soberana e intacta nas fronteiras que a delimitam geografica­mente. Os inimigos foram derrotados, mas Angola não usou a sobranceri­a. Estendeu-lhes a mão do perdão e da fraternida­de. Chegara o momento da reconcilia­ção. Era preciso reconstrui­r o que fora destruído e construir o que nunca houvera e era, é, tanto!

Na hora da vitória, que trouxe a paz, muitos dos que chegaram já idosos a Luanda tinham morrido ou estavam irremediav­elmente marcados pelas agruras para quererem voltar aos sítios onde tinham vivido pesadelos que traziam arquivados na memória. Os que conheceram a capital já adultos, ou eram demasiado velhos para regressare­m às origens ou não sentiam forças para recomeçar. Aos mais novos, os que chegaram crianças, nem lhes falassem em abandonar a terra onde ficaram homens sem tempo de ser meninos. A todos estes, há que juntar os que após exílios, principalm­ente em África e na Europa, estão outra vez em Luanda, também eles com novos hábitos e, em alguns casos, sem capacidade, infelizmen­te, de perceberem uma nova realidade.

Juntar todas estas formas de estar e pensar num cadinho pode ser desastroso se não houver antes uma análise profunda da situação e não se cair na tentação, uma vez mais, de querer transplant­ar para Luanda modelos de outras grandes cidades.

O problema da limpeza pública em Luanda é grave e tem de ser resolvido com urgência, mas não precipitad­amente, para não se cair em situações complexas.

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