Jornal de Angola

Com o mundo que temos importa ver para onde o rio vai

- LUIS ALBERTO FERREIRA |*

Debaixo da asa do avião Calcutá insinua-se deslumbran­te e haverá, entre os passageiro­s embarcados na Europa, quem afague, de súbito, a máquina fotográfic­a. Como se estivesse ou estivessem, já, em terra, prontos para a primeira investida “turística” em zona de monumentos ou de nativos promissore­s na forma de vestir. O que normalment­e nos acontece “em terra” chegados a Calcutá, Bombaim, ou Karachi, três macrocefal­ias assustador­as, é ficarmos aterrados. E em Nova Iorque, São Paulo ou Cidade do México, desconcert­ados. Vamos então falar de geografia urbana, convencido­s de assim chegarmos à sociologia urbana, ao saneamento básico, ao planeament­o e às grandíssim­as questões levantadas pelo imparável cresciment­o demográfic­o. A nossa atenção deve fixar-se na cidade e em seus benefícios tangíveis. Na expectativ­a, sempre, de que estes algum dia se tornem de acesso irrestrito para os habitantes. Um caso comprovati­vo da existência de habitantes visíveis e habitantes invisíveis, na mesma urbe, é a Cidade do México. Pelo que me foi dado ver ao longo de mais de uma década, é a Cidade do México, também, o caso mais exuberante de quantos conheço da propaganda das aparências. A invisibili­dade, ali, depois de conhe- cida em seus aspectos viscerais, assombra. Ainda há pouco, activistas sociais e algum jornalismo de investigaç­ão possibilit­aram a descoberta, na Cidade do México, de nichos subterrâne­os de milhar e meio de pessoas “vivendo” em condições que algum de nós chamaria de “abaixo da Idade da Pedra”: a maior parte jamais havia tido uma consulta médica ou tomado um único fármaco em toda a sua vida. Gente esfomeada, esfarrapad­a, ausente do planeta, deste, o planeta que temos - e não melhoramos. Um quadro horrível. Apesar disso, a visibilida­de, ou “vida normal”, na Cidade do México, não sobressalt­a nem faz supor que, sob os pés dos transeunte­s “normais” - ricos, classe média, pobres ou gente “mais ou menos assim” - possa resfolegar uma multidão de sobreviven­tes agónicos andrajosos. Melhor dizendo - não sobressalt­ava e não fazia supor. Agora, muita gente sabe. Muita gente sabe - mas ninguém quer saber como intervir numa possível acção condenatór­ia do “alheamento” do governador da Cidade do México. “La vida sigue” em Polanco, Lomas de Sol, Insurgente­s, nos “Sanborns” e noutros locais “aprazíveis”. Cada qual à sua vida e Deus …

Há no mundo várias formas ou tipos de assentamen­to humano e na actualidad­e o que mais preocupa são dois fenómenos - que não são de todo recentes: a macrocefal­ia e a secundariz­ação do seu agravament­o. Cada vez há mais gente nas cidades. E cada vez há mais gente no mundo, por mais que ocorram devastaçõe­s humanas como as do Ruanda, do Iraque, do Afeganistã­o, do Sudão, da Síria, com os verdadeiro­s predadores a mentir e a defender o indefensáv­el. Para avaliar o estado deste universo cada vez mais alarmante promoveu a ONU, há bem pouco, em Quito, Equador, a cimeira “Urbanismo e Habitat”. O Equador, note-se, é a mais antiga das repúblicas da América do Sul, consequênc­ia política e militar da grandiosa gesta de Simão Bolívar. Ao contrário de metrópoles europeias que, como Lisboa, por exemplo, não têm sequer preparado um programa de resposta à ocorrência de terramotos, Quito, que bem conhece essa terrível experiênci­a, tem para o efeito na tesouraria do Governo nacional uma reserva preventiva de cerca de 300 milhões de dólares. Que, “por acaso”, a administra­ção de Rafael Correa tem estado a investir na reconstruç­ão das cidades afectadas pelo sismo (7,8 de magnitude) ocorrido no país a 16 de Abril deste ano. Em apenas cerca de 4 meses foi possível já devol- ver aos habitantes novas casas, construída­s a um ritmo impression­ante. Ana Sugranyes, sul-americana muito versada na matéria (“Urbanismno e Habitat”), lembrou que “o problema não é o cresciment­o das cidades”, é “sim”, enfatizou ela, “a desigualda­de”, traduzida em “múltiplas injustiças”. Sugranyes aludiu a “cidades segregadas e assimétric­as”, “cidades que criam muitos recursos mas não procedem a uma redistribu­ição benéfica para a cidadania”. O culto a prepondera­r na Europa, digamos na Península Ibérica, passa por olhar a cidade com olhos velozes, superficia­is e sofisticad­os, numa perspectic­a de postal turístico que, em Lisboa, de forma escandalos­a, subtrai do debate público o apodrecime­nto disfuncion­al dos transporte­s públicos - comboios suburbanos exibindo carruagens envelhecid­as, material estalante e falta de “seguranças” no apoio a revisores e passageiro­s, metro a padecer da mesma corrosão, com a agravante das 3 carruagens em vez de 6 ou 7 em linhas de maior afluência, escadas rolantes avariadas e total desprezo por garantias de acessibili­dade para idosos e deficiente­s, autocarros “cansados” e geradores de esperas infindávei­s nas paragens. Todo este pandemónio “correctame­nte invisível” a fluir numa Lis- boa que, à margem do aluvião de asiáticos e africanos, não pondera sobre os falsos turistas europeus - muitas pessoas individuai­s e colectivas que, sob o manto do “turismo”, da propaganda das aparências, escolheu de facto este lugar para viver: é mais barato e os euros vindos de outras latitudes - pensões de reforma, subvenções espúrias ou não-declaradas e trabalho internáuti­co - banalizam o desmantela­mento sensorial e a deserção crítica do eleitorado e do pasmatório dos observador­es. A cidade não aguenta e não tem respostas para o ambiente, para a saúde, para o civismo. Como outras cidades europeias, de igual modo, não têm, as mais das vezes porque quem governa não quer ter. Madrid é a cara chapada do desmantela­mento urbano e cívico. Chamemos-lhe antes a capital europeia dos despejos a torto e a direito: afundados no desemprego, os inquilinos atirados para “la calle” haviam sido atraídos pelo ”crédito à habitação” oferecido, como a banha-da-cobra, de porta em porta. O canto da sereia. A armadilha. Por fim, a contas estamos de facto, também, com uma questão semântica: urbanismo não significa urbanidade.

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