Com o mundo que temos importa ver para onde o rio vai
Debaixo da asa do avião Calcutá insinua-se deslumbrante e haverá, entre os passageiros embarcados na Europa, quem afague, de súbito, a máquina fotográfica. Como se estivesse ou estivessem, já, em terra, prontos para a primeira investida “turística” em zona de monumentos ou de nativos promissores na forma de vestir. O que normalmente nos acontece “em terra” chegados a Calcutá, Bombaim, ou Karachi, três macrocefalias assustadoras, é ficarmos aterrados. E em Nova Iorque, São Paulo ou Cidade do México, desconcertados. Vamos então falar de geografia urbana, convencidos de assim chegarmos à sociologia urbana, ao saneamento básico, ao planeamento e às grandíssimas questões levantadas pelo imparável crescimento demográfico. A nossa atenção deve fixar-se na cidade e em seus benefícios tangíveis. Na expectativa, sempre, de que estes algum dia se tornem de acesso irrestrito para os habitantes. Um caso comprovativo da existência de habitantes visíveis e habitantes invisíveis, na mesma urbe, é a Cidade do México. Pelo que me foi dado ver ao longo de mais de uma década, é a Cidade do México, também, o caso mais exuberante de quantos conheço da propaganda das aparências. A invisibilidade, ali, depois de conhe- cida em seus aspectos viscerais, assombra. Ainda há pouco, activistas sociais e algum jornalismo de investigação possibilitaram a descoberta, na Cidade do México, de nichos subterrâneos de milhar e meio de pessoas “vivendo” em condições que algum de nós chamaria de “abaixo da Idade da Pedra”: a maior parte jamais havia tido uma consulta médica ou tomado um único fármaco em toda a sua vida. Gente esfomeada, esfarrapada, ausente do planeta, deste, o planeta que temos - e não melhoramos. Um quadro horrível. Apesar disso, a visibilidade, ou “vida normal”, na Cidade do México, não sobressalta nem faz supor que, sob os pés dos transeuntes “normais” - ricos, classe média, pobres ou gente “mais ou menos assim” - possa resfolegar uma multidão de sobreviventes agónicos andrajosos. Melhor dizendo - não sobressaltava e não fazia supor. Agora, muita gente sabe. Muita gente sabe - mas ninguém quer saber como intervir numa possível acção condenatória do “alheamento” do governador da Cidade do México. “La vida sigue” em Polanco, Lomas de Sol, Insurgentes, nos “Sanborns” e noutros locais “aprazíveis”. Cada qual à sua vida e Deus …
Há no mundo várias formas ou tipos de assentamento humano e na actualidade o que mais preocupa são dois fenómenos - que não são de todo recentes: a macrocefalia e a secundarização do seu agravamento. Cada vez há mais gente nas cidades. E cada vez há mais gente no mundo, por mais que ocorram devastações humanas como as do Ruanda, do Iraque, do Afeganistão, do Sudão, da Síria, com os verdadeiros predadores a mentir e a defender o indefensável. Para avaliar o estado deste universo cada vez mais alarmante promoveu a ONU, há bem pouco, em Quito, Equador, a cimeira “Urbanismo e Habitat”. O Equador, note-se, é a mais antiga das repúblicas da América do Sul, consequência política e militar da grandiosa gesta de Simão Bolívar. Ao contrário de metrópoles europeias que, como Lisboa, por exemplo, não têm sequer preparado um programa de resposta à ocorrência de terramotos, Quito, que bem conhece essa terrível experiência, tem para o efeito na tesouraria do Governo nacional uma reserva preventiva de cerca de 300 milhões de dólares. Que, “por acaso”, a administração de Rafael Correa tem estado a investir na reconstrução das cidades afectadas pelo sismo (7,8 de magnitude) ocorrido no país a 16 de Abril deste ano. Em apenas cerca de 4 meses foi possível já devol- ver aos habitantes novas casas, construídas a um ritmo impressionante. Ana Sugranyes, sul-americana muito versada na matéria (“Urbanismno e Habitat”), lembrou que “o problema não é o crescimento das cidades”, é “sim”, enfatizou ela, “a desigualdade”, traduzida em “múltiplas injustiças”. Sugranyes aludiu a “cidades segregadas e assimétricas”, “cidades que criam muitos recursos mas não procedem a uma redistribuição benéfica para a cidadania”. O culto a preponderar na Europa, digamos na Península Ibérica, passa por olhar a cidade com olhos velozes, superficiais e sofisticados, numa perspectica de postal turístico que, em Lisboa, de forma escandalosa, subtrai do debate público o apodrecimento disfuncional dos transportes públicos - comboios suburbanos exibindo carruagens envelhecidas, material estalante e falta de “seguranças” no apoio a revisores e passageiros, metro a padecer da mesma corrosão, com a agravante das 3 carruagens em vez de 6 ou 7 em linhas de maior afluência, escadas rolantes avariadas e total desprezo por garantias de acessibilidade para idosos e deficientes, autocarros “cansados” e geradores de esperas infindáveis nas paragens. Todo este pandemónio “correctamente invisível” a fluir numa Lis- boa que, à margem do aluvião de asiáticos e africanos, não pondera sobre os falsos turistas europeus - muitas pessoas individuais e colectivas que, sob o manto do “turismo”, da propaganda das aparências, escolheu de facto este lugar para viver: é mais barato e os euros vindos de outras latitudes - pensões de reforma, subvenções espúrias ou não-declaradas e trabalho internáutico - banalizam o desmantelamento sensorial e a deserção crítica do eleitorado e do pasmatório dos observadores. A cidade não aguenta e não tem respostas para o ambiente, para a saúde, para o civismo. Como outras cidades europeias, de igual modo, não têm, as mais das vezes porque quem governa não quer ter. Madrid é a cara chapada do desmantelamento urbano e cívico. Chamemos-lhe antes a capital europeia dos despejos a torto e a direito: afundados no desemprego, os inquilinos atirados para “la calle” haviam sido atraídos pelo ”crédito à habitação” oferecido, como a banha-da-cobra, de porta em porta. O canto da sereia. A armadilha. Por fim, a contas estamos de facto, também, com uma questão semântica: urbanismo não significa urbanidade.