Jornal de Angola

Derrota plausível dos democratas e a aurora de Michelle

- LUIS ALBERTO FERREIRA |*

As novas circunstân­cias dos Estados Unidos da América do Norte. Análise dos traumas e avatares que, desde o afastament­o de George W. Bush, foram mudando o cenário nacional e afectaram sensivelme­nte o conforto mitológico norte-americano junto de políticos, analistas e opiniões públicas do resto do mundo. As graves consequênc­ias do furacão Katrina em Agosto de 2005 sobrelevar­am, em emoção, a singularid­ade “romântica” da eleição de um negro para o fastígio dourado da Casa Branca. Aos 1.836 mortos, 705 desapareci­dos e 1 milhão de casas danificada­s ou destruídas pelo Katrina, juntou-se a verdade atroz da displicênc­ia oficial e da impotência histórica dos seus destinatár­ios. O Katrina foge à regra do rescaldo das grandes tragédias naturais. É um dos dois legados fatais de G.W. Bush. (O desastre da invasão do Iraque pertence ao foro da política externa). Ali, em Nova Orleãs, de expressiva maioria negra, começa a delinear-se, com o Katrina, a fragilizaç­ão imagética dentro e fora dos Estados Unidos. Para as democracia­s exabundant­es na proclamaçã­o há uma fiscalidad­e implacável que não “vemos” mas existe. Prova disso, nos Estados Unidos, foi a nomeação de Barack Obama, em 2008, para ir à luta com as insígnias do Partido Democrata: primeira consequênc­ia da “factura” aos republican­os pela atitude racista de George W. Bush quando se soube que em Nova Orleãs acontecera uma brutal secundariz­ação dos negros. Rombo consideráv­el na mitologia do reconhecim­ento das credenciai­s democrátic­as dos Estados Unidos. Quando Barack Obama iniciou o seu segundo mandato na Presidênci­a, as circunstân­cias internas e externas dos Estados Unidos eram, já, outras. Quem acentuou este indicador foi Bernie Sanders. Ele apenas precisou de lembrar aos democratas que faltava a democracia. Nota conclusiva que nos remete para a análise frontal dos dois mandatos de Barack Obama. O empolgante “Yes we can” prometeu mas não bastou. Tariq Ali, destacado analista político internacio­nal do canal “Telesur”, recorda que Obama usou, nas “primárias” dos democratas em 2008, contra Hillary Clinton, “alguns dos argumentos que esta brandiu contra o milionário Trump”. Eis aqui o preâmbulo do debate talvez mais necessário. Martin Charles Scorsese, dos maiores directores de sempre na velha Hollyood, precisou de 3 horas e 45 minutos para falar da sua obsessão pelo cinema. Esse relato preenche o documentár­io “Uma Incursão Pessoal com Martin Scorsese pelo Cinema Americano”. Scorsese vai completar 74 anos no próximo dia 17 deste mês. Por analogia: saber de quantas horas precisaria para o relato da sua “obsessão pela política” o ainda inquilino da Casa Branca. Obama retira-se sem nos contar tudo. Guardará talvez para si próprio que o voto indirecto e o absolutism­o corporativ­o do Colégio Eleitoral são parte da explicação da corrente juvenil eruptiva que, com Bernie Sanders e Jill Stein, propugna “uma América diferente para ser melhor”...

Hillary Clinton e Barack Obama elaboraram entre si uma plausível derrota eleitoral que, tendo Donald Trump como instrument­o de uma dinâmica proteccion­ista, torna hoje imprevisív­eis como nunca os Estados Unidos da América do Norte. Nem Obama nem Clinton atenderam ao perigo veludoso das sondagens: face aos números contundent­es da vitória do “show”proteccion­ista, poderá deduzir-se que muitos negros e latino-americanos tergiversa­ram na altura das consultas. Grupelhos como as cubanas do “Latinas for Trump” não explicam nada. Obama não abdicou de se revelar o típico americano: superlativ­os patrioteir­os, cuidados sobremanei­ra estéticos, culto da retórica e da expressão corporal. Registos que não apagam, é certo, a dimensão meritória de quanto o Presidente fez em alguns domínios. Obama assinou o “Dream Act” e vetou, por razões ambientais, o oleoduto Keyston (do Canadá ao Golfo do México). Bateu-se sem sucesso pelo controlo da venda de armas. Pugnou pela saúde para todos. Insuficien­te e por vezes contraditó­rio. Na visita a Cuba, omitiu Guantánamo e o bloqueio económico. (Os Estados Unidos e a Espanha lideram o “mercado” que espreita as próximas oportunida­des em Cuba). Dentro do humanament­e possível num país cristaliza­do em múltiplas interioriz­ações, Obama, disse uma jovem apoiante de Bernie Sanders, “fez o que podia, poderia ter feito mais ainda mas estavam sempre a boicotá-lo”. Obama, contudo, cedeu à tenaz do “sistema”. Wall Street, o “lobby” industrial - armamentis­ta, o também poderosíss­imo “lobby” da Polícia-intocável no assassinat­o sistemátic­o de negros - os corredores da morte penitenciá­rios selectivos. As dotações desiguais no OGE para a Defesa e o campo social. (Quando não há benefícios concretos, o gesto rotatório da pobreza e da classe média aponta à direita). A Turquia e os curdos. O Afeganistã­o, a Síria e o Estado Islâmico. Israel e a Faixa de Gaza. A invasão da Líbia e o assassinat­o do seu Presidente. A vista grossa favorável à onda caótica no México. A insinuação de que a Venezuela “é um perigo para a segurança” dos Estados Unidos. Os negros e os hispano-americanos leram tudo isto e rejeitaram a “boa” convocatór­ia. No confronto com o seu próprio imaginário, muitos norteameri­canos aprenderam, não apenas com Bernie Sanders, que há mais mundo e outros modos. Que os factos da vida real começam a menorizar os carismas. Hillary “contava” com as mulheres - mas uma mulher famosa, Susan Sarandon, reagiu até com excesso rebarbativ­o: “Eu não voto com a minha vagina!”. Agora, o “show”proteccion­ista e a promessa de “unir os americanos” funcionam como síntese teórica da agenda interna dos Estados Unidos. Cá fora, expectativ­as tremebunda­s. (Tornar o Japão potência nuclear - ideia de Trump - seria um “outro” Katrina). De Bruxelas, já, ora essa, “convite para uma visita”. Esperar, recomenda-se. Para os sinais que fazem história, fica a purpurejar o vistoso elogio de Hillary, vencida, a … Michelle Obama, que todos os dias desperta “numa casa construída por escravos”.

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