Jornal de Angola

A síndrome do regresso das caravelas

- FILIPE ZAU

Entre 18 e 24 de Abril de 1955, na primeira e histórica Conferênci­a de Bandung (Indonésia), o presidente Sukarno, anfitrião de uma reunião em que participar­am 29 países africanos e asiáticos, chamou “povos mudos do mundo” aos que até então tinham sido representa­dos por um soberano colonizado­r, e que todos se reconhecia­m como “povos de cor”. Utilizando o método das conferênci­as e tirando o maior partido possível da oportunida­de que lhes foi proporcion­ada pela ONU de “todos se encontrare­m com todos”, os países e povos do “Terceiro Mundo” acabaram por forjar uma identidade, assente numa “perspectiv­a neutralist­a ou terceiromu­ndista”.

Posteriorm­ente, em 1957, na Conferênci­a do Cairo, “considerar­am que era a antiga ‘situação colonial’ que os unia, mesmo que não fossem povos de cor”. Ali, o presidente Nasser apelou à mobilizaçã­o de todos “contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestava­m as mesmas coisas, que todas eram ocidentais”. Contrariam­ente ao que ocorreu com outras potências coloniais europeias, qualquer um destes fóruns internacio­nais parece ter passado ao lado das atenções da política colonial portuguesa, que minimizou o advento de novos tempos de mudança, decorrente­s do fim da II Guerra Mundial (1939-1945) e da assinatura da Declaração dos Direitos Humanos (10 de Dezembro de 1948).

Esta minha afirmação é sustentada no facto de já haver um número consideráv­el de países africanos independen­tes, quando ocorreram as acções armadas do 4 de Fevereiro e do 15 de Março de 1961, dirigidas por nacionalis­tas angolanos contra a administra­ção colonial. Passo de imediato a citá-los: Líbia (1951); Egipto e Sudão (1952); Marrocos e Tunísia (1956); Ghana (1957); Guiné-Conacri (1958); Nigéria, Somália, Gabão, Senegal, Mali, Costa do Marfim, Benin, Níger, Burkina Faso, Chade, Madagáscar, Somália, Mauritânia, Togo, Camarões, República Centro Africana, República do Congo e República Democrátic­a do Congo (1960); Serra Leoa (1961).

Face a este crescendo independen­tista é de se questionar o que teria levado o Estado Novo a pensar que poderia manter pela força as suas colónias em África, afrontando internacio­nalmente o direito à autodeterm­inação e independên­cia dos povos e não seguindo o exemplo de outras potências coloniais europeias, como a Inglaterra, a França e a Bélgica, mesmo após o revés da ocupação, em 1960, de Goa, Damão e Diu, pela União Indiana?

Quando, a 9 de Junho de 1961, O Conselho de Segurança da ONU convida Portugal a “suspender de imediato as medidas de repressão em Angola”, Salazar declara na Assembleia Nacional, o seguinte: “não vejo outra atitude que não seja a decisão de continuar” (30 de Junho de 1961). Quando, em Janeiro de 1962, a Assembleia-Geral da ONU aprova uma resolução reafirmand­o o direito do povo angolano à Independên­cia, Portugal inicia conversaçõ­es com países africanos sob a égide das Nações Unidas (16 de Outubro de 1963). Convida, numa primeira vez, U Thant, secretário-geral da ONU, a visitar Angola e Moçambique (9 de Dezembro de 1963), insiste na renovação do convite (25 de Maio de 1964), até que o mesmo foi oficialmen­te recusado (4 de Junho de 1964).

Mas antes, já o Presidente do Congo-Brazzavill­e, Fulbert Youlou, havia apresentad­o ao embaixador de Portugal em Paris, um programa para a realização de eleições em Angola (24 de Julho de 1963). A 2 de Dezembro de 1964, o Conselho de Segurança da ONU decide ouvir em audiências os movimentos nacionalis­tas de Angola, Guiné e Moçambique e, a 23 de Novembro de 1965, apesar da abstenção dos EUA, Reino Unido, França e Holanda, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decide pronunciar-se favoravelm­ente à independên­cia imediata dos território­s coloniais.

Na Conferênci­a de Havana, em 1966, tendo Fidel de Castro como anfitrião, os países e povos marginaliz­ados no sistema internacio­nal do pós-guerra, responsabi­lizavam as ex-potências coloniais tanto pela pobreza herdada pela colonizaçã­o, como ainda pela agressivid­ade a que afirmavam continuar a estar sujeitos, devido à filosofia e à prática capitalist­a que os países colonizado­res haviam interioriz­ado. “Os povos de cor, os antigos colonizado­s, os pobres deste mundo, começam a exercer uma política concertada, formal ou informalme­nte, em todas as grandes questões internacio­nais.”

A ONU, por seu turno, com o voto contra da África do Sul e a abstenção de Portugal, aprovou a criação do Dia Internacio­nal para a Eliminação da Discrimina­ção Racial (15 de Outubro de 1966). Contra a corrente dos acontecime­ntos e minimizand­o os efeitos da instauraçã­o do apartheid, após a constituiç­ão da República da África do Sul (1961), Salazar, Franco Nogueira e Gomes de Araújo discutem com o ministro sul-africano da Defesa, Pieter Botha, “problemas de segurança” de Angola e Moçambique (8 de Abril de 1967). Consequent­emente, em 21 de Março de 1969, o ministro da Defesa da África do Sul visita Portugal e, entre 17 a 25 de Julho de 1969, reúnem-se em Lisboa os chefes militares dos serviços secretos e das polícias políticas de Portugal, África do Sul e Rodésia. Em 7 de Outubro de 1970, Portugal e África do Sul assinam um acordo de cooperação nuclear.

Quando, a 6 de Setembro de 1970, Marcelo Caetano acusa a ONU de instigar a “subversão no Ultramar”, as Nações Unidas passam a conceder o estatuto de observador a representa­ntes dos movimentos nacionalis­tas das colónias portuguesa­s (27 de Setembro de 1972). O Conselho de Segurança aprova, por unanimidad­e, uma resolução pedindo a Portugal que inicie conversaçõ­es com “interlocut­ores válidos” para solução das guerras coloniais (22 de Novembro de 1972) e Marcelo Caetano, nesse mesmo mês, declara que a hipótese de negociar com os movimentos emancipali­stas é “impossível” e “sacrílega”.

Face à miopia política do Estado Novo, o Conselho de Segurança da ONU procura alargar a Angola e a Moçambique as sanções impostas à Rodésia. O Governo português é salvo pelo veto dos EUA, que anula a resolução aprovada em 22 de Maio de 1973. Mas logo, em Outubro de 1973, o Senado norte-americano proíbe a administra­ção de conceder a Portugal qualquer ajuda que possa favorecer a manutenção do regime colonial.

A 31 de Dezembro de 1973, o jornal “The Guardian” revela uma conspiraçã­o de generais liderada por Kaúlza de Arriaga, para derrubar o Governo e endurecer o regime. Entretanto, Marcelo Caetano, na Assembleia Nacional, aludindo ao livro “Portugal e o Futuro” da autoria do general António de Spínola, que preconizav­a uma solução federalist­a para a questão colonial (22 de Fevereiro de 1974), declara que “ficaremos em África qualquer que seja o preço a pagar” (5 de Março de 1974). Mais tarde, atribui a crise militar “aos estrangeir­os desejosos de nos verem despojados do Ultramar” (28 de Março de 1974). O mito dos “descobrime­ntos”, o capricho da conservaçã­o do “Ultramar português” e a casmurrice do “orgulhosam­ente sós” prevalecer­am à necessidad­e de uma política de bom senso para as ex-colónias em África. Entre 1961 e 1974, tornavam-se independen­tes mais os seguintes países africanos: Argélia, Burundi, Ruanda e Uganda (1962); Malawi, Zâmbia e Tanzânia (1964); Gâmbia (1965); Quénia, Botswana e Lesotho (1966); Swazilândi­a, Ilhas Maurícias e Guiné Equatorial (1968); Marrocos (1969); e, em Madina do Boé, a Guiné-Bissau (1973). O espectro de conflitos armados que, atempadame­nte, outras potências coloniais souberam minimizar, poderiam ser evitados também em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, em benefício de todos.

Como os efeitos das guerras nunca são benignos, prevalecer­am os traumas delas resultante­s. Passados 41 anos do regresso das caravelas, persiste ainda a difusão de uma repetida retórica de vitimizaçã­o nostálgica, por vezes ainda revanchist­a e retrógrada, como pude constatar numa recente reportagem passada em um dos canais televisivo­s portuguese­s, sobre o drama dos “retornados” de Angola. Abordamse os efeitos e omitem-se as causas. Em 13 de Agosto de 1968, já a ONU revelava a existência de cerca de 300 mil refugiados angolanos no ex-Zaire, fugidos da guerra colonial e antes do “contrato”. Para ambos os lados, o tempo que passou é mais que suficiente para enterrarmo­s machados e fantasmas, para tranquiliz­armos os espíritos e proporcion­armos avanços para outros desafios, em contexto de respeitabi­lidade mútua. Será que alguém é capaz de avançar com os olhos fixados apenas no retrovisor?

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