A síndrome do regresso das caravelas
Entre 18 e 24 de Abril de 1955, na primeira e histórica Conferência de Bandung (Indonésia), o presidente Sukarno, anfitrião de uma reunião em que participaram 29 países africanos e asiáticos, chamou “povos mudos do mundo” aos que até então tinham sido representados por um soberano colonizador, e que todos se reconheciam como “povos de cor”. Utilizando o método das conferências e tirando o maior partido possível da oportunidade que lhes foi proporcionada pela ONU de “todos se encontrarem com todos”, os países e povos do “Terceiro Mundo” acabaram por forjar uma identidade, assente numa “perspectiva neutralista ou terceiromundista”.
Posteriormente, em 1957, na Conferência do Cairo, “consideraram que era a antiga ‘situação colonial’ que os unia, mesmo que não fossem povos de cor”. Ali, o presidente Nasser apelou à mobilização de todos “contra as antigas soberanias opressoras, porque todos contestavam as mesmas coisas, que todas eram ocidentais”. Contrariamente ao que ocorreu com outras potências coloniais europeias, qualquer um destes fóruns internacionais parece ter passado ao lado das atenções da política colonial portuguesa, que minimizou o advento de novos tempos de mudança, decorrentes do fim da II Guerra Mundial (1939-1945) e da assinatura da Declaração dos Direitos Humanos (10 de Dezembro de 1948).
Esta minha afirmação é sustentada no facto de já haver um número considerável de países africanos independentes, quando ocorreram as acções armadas do 4 de Fevereiro e do 15 de Março de 1961, dirigidas por nacionalistas angolanos contra a administração colonial. Passo de imediato a citá-los: Líbia (1951); Egipto e Sudão (1952); Marrocos e Tunísia (1956); Ghana (1957); Guiné-Conacri (1958); Nigéria, Somália, Gabão, Senegal, Mali, Costa do Marfim, Benin, Níger, Burkina Faso, Chade, Madagáscar, Somália, Mauritânia, Togo, Camarões, República Centro Africana, República do Congo e República Democrática do Congo (1960); Serra Leoa (1961).
Face a este crescendo independentista é de se questionar o que teria levado o Estado Novo a pensar que poderia manter pela força as suas colónias em África, afrontando internacionalmente o direito à autodeterminação e independência dos povos e não seguindo o exemplo de outras potências coloniais europeias, como a Inglaterra, a França e a Bélgica, mesmo após o revés da ocupação, em 1960, de Goa, Damão e Diu, pela União Indiana?
Quando, a 9 de Junho de 1961, O Conselho de Segurança da ONU convida Portugal a “suspender de imediato as medidas de repressão em Angola”, Salazar declara na Assembleia Nacional, o seguinte: “não vejo outra atitude que não seja a decisão de continuar” (30 de Junho de 1961). Quando, em Janeiro de 1962, a Assembleia-Geral da ONU aprova uma resolução reafirmando o direito do povo angolano à Independência, Portugal inicia conversações com países africanos sob a égide das Nações Unidas (16 de Outubro de 1963). Convida, numa primeira vez, U Thant, secretário-geral da ONU, a visitar Angola e Moçambique (9 de Dezembro de 1963), insiste na renovação do convite (25 de Maio de 1964), até que o mesmo foi oficialmente recusado (4 de Junho de 1964).
Mas antes, já o Presidente do Congo-Brazzaville, Fulbert Youlou, havia apresentado ao embaixador de Portugal em Paris, um programa para a realização de eleições em Angola (24 de Julho de 1963). A 2 de Dezembro de 1964, o Conselho de Segurança da ONU decide ouvir em audiências os movimentos nacionalistas de Angola, Guiné e Moçambique e, a 23 de Novembro de 1965, apesar da abstenção dos EUA, Reino Unido, França e Holanda, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decide pronunciar-se favoravelmente à independência imediata dos territórios coloniais.
Na Conferência de Havana, em 1966, tendo Fidel de Castro como anfitrião, os países e povos marginalizados no sistema internacional do pós-guerra, responsabilizavam as ex-potências coloniais tanto pela pobreza herdada pela colonização, como ainda pela agressividade a que afirmavam continuar a estar sujeitos, devido à filosofia e à prática capitalista que os países colonizadores haviam interiorizado. “Os povos de cor, os antigos colonizados, os pobres deste mundo, começam a exercer uma política concertada, formal ou informalmente, em todas as grandes questões internacionais.”
A ONU, por seu turno, com o voto contra da África do Sul e a abstenção de Portugal, aprovou a criação do Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (15 de Outubro de 1966). Contra a corrente dos acontecimentos e minimizando os efeitos da instauração do apartheid, após a constituição da República da África do Sul (1961), Salazar, Franco Nogueira e Gomes de Araújo discutem com o ministro sul-africano da Defesa, Pieter Botha, “problemas de segurança” de Angola e Moçambique (8 de Abril de 1967). Consequentemente, em 21 de Março de 1969, o ministro da Defesa da África do Sul visita Portugal e, entre 17 a 25 de Julho de 1969, reúnem-se em Lisboa os chefes militares dos serviços secretos e das polícias políticas de Portugal, África do Sul e Rodésia. Em 7 de Outubro de 1970, Portugal e África do Sul assinam um acordo de cooperação nuclear.
Quando, a 6 de Setembro de 1970, Marcelo Caetano acusa a ONU de instigar a “subversão no Ultramar”, as Nações Unidas passam a conceder o estatuto de observador a representantes dos movimentos nacionalistas das colónias portuguesas (27 de Setembro de 1972). O Conselho de Segurança aprova, por unanimidade, uma resolução pedindo a Portugal que inicie conversações com “interlocutores válidos” para solução das guerras coloniais (22 de Novembro de 1972) e Marcelo Caetano, nesse mesmo mês, declara que a hipótese de negociar com os movimentos emancipalistas é “impossível” e “sacrílega”.
Face à miopia política do Estado Novo, o Conselho de Segurança da ONU procura alargar a Angola e a Moçambique as sanções impostas à Rodésia. O Governo português é salvo pelo veto dos EUA, que anula a resolução aprovada em 22 de Maio de 1973. Mas logo, em Outubro de 1973, o Senado norte-americano proíbe a administração de conceder a Portugal qualquer ajuda que possa favorecer a manutenção do regime colonial.
A 31 de Dezembro de 1973, o jornal “The Guardian” revela uma conspiração de generais liderada por Kaúlza de Arriaga, para derrubar o Governo e endurecer o regime. Entretanto, Marcelo Caetano, na Assembleia Nacional, aludindo ao livro “Portugal e o Futuro” da autoria do general António de Spínola, que preconizava uma solução federalista para a questão colonial (22 de Fevereiro de 1974), declara que “ficaremos em África qualquer que seja o preço a pagar” (5 de Março de 1974). Mais tarde, atribui a crise militar “aos estrangeiros desejosos de nos verem despojados do Ultramar” (28 de Março de 1974). O mito dos “descobrimentos”, o capricho da conservação do “Ultramar português” e a casmurrice do “orgulhosamente sós” prevaleceram à necessidade de uma política de bom senso para as ex-colónias em África. Entre 1961 e 1974, tornavam-se independentes mais os seguintes países africanos: Argélia, Burundi, Ruanda e Uganda (1962); Malawi, Zâmbia e Tanzânia (1964); Gâmbia (1965); Quénia, Botswana e Lesotho (1966); Swazilândia, Ilhas Maurícias e Guiné Equatorial (1968); Marrocos (1969); e, em Madina do Boé, a Guiné-Bissau (1973). O espectro de conflitos armados que, atempadamente, outras potências coloniais souberam minimizar, poderiam ser evitados também em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, em benefício de todos.
Como os efeitos das guerras nunca são benignos, prevaleceram os traumas delas resultantes. Passados 41 anos do regresso das caravelas, persiste ainda a difusão de uma repetida retórica de vitimização nostálgica, por vezes ainda revanchista e retrógrada, como pude constatar numa recente reportagem passada em um dos canais televisivos portugueses, sobre o drama dos “retornados” de Angola. Abordamse os efeitos e omitem-se as causas. Em 13 de Agosto de 1968, já a ONU revelava a existência de cerca de 300 mil refugiados angolanos no ex-Zaire, fugidos da guerra colonial e antes do “contrato”. Para ambos os lados, o tempo que passou é mais que suficiente para enterrarmos machados e fantasmas, para tranquilizarmos os espíritos e proporcionarmos avanços para outros desafios, em contexto de respeitabilidade mútua. Será que alguém é capaz de avançar com os olhos fixados apenas no retrovisor?