Canções da Independência na III Trienal de Luanda
Histórico do “Kissanguela” revisita temas que marcaram o período da eclosão da liberdade
Santos Júnior, voz emblemática do agrupamento “Kissanguela”, revisitou temas que marcaram o advento da liberdade, tendo realçado nas suas canções o simbolismo, emoção, e importância da independência, em concerto realizado, sexta-feira última, no palco do Palácio de Ferro no âmbito da III Trienal de Luanda, um projecto cultural da Fundação SindikaDokolo.
Música “engagé”, de intervenção, revolucionária ou, simplesmente, canção política, a verdade é que, volvidos quarenta e um anos, ficou gravado na memória colectiva dos angolanos, a marca inapagável de uma música inequivocamente romântica, nos seus motivos melódicos, e, verdadeiramente eficaz, nos seus propósitos políticos e textuais.
Na abertura do concerto, Santos Júnior esclareceu o seguinte aos mais jovens, presentes no Palácio de Ferro: “Muitas das canções que vou cantar hoje poderão não ser conhecidas pela geração mais jovem aqui presente, que, naturalmente, não viveu a época colonial nem o período da independência que se seguiu, em 1975. No entanto, espero poder partilhar com sucesso este concerto, e recordar momentos memoráveis de um passado recente que foi muito importante para a história de Angola e transformou radicalmente a vida dos angolanos. Por esta nobre razão pretendo comemorar com vocês este facto e, simultaneamente, o aniversário dos quarenta e um anos da nossa Independência Nacional”.O cantor e compositor Santos Júnior, autor e intérprete de vários temas emblemáticos deste período, dos quais se destacam as canções “Atu mu ngila”, tema que abriu o concerto, e “Estrangeiro”, foi um dos principais arautos da canção política e da estética musical do período da revolução.
Concerto
No concerto realizado no Palácio de Ferro, sexta-feira, Santos Júnior foi acompanhado pela Banda Movimento, da Rádio Nacional de Angola, com Teddy Simão Nsingui, guitarra solo, Kintino, viola ritmo, Mias Galheta, viola baixo, Romão Teixeira, bateria, Nino Groba e Chico Madne, teclas, Manuel Correia, percussão,Massoxi, dikanza, Mister Kim, Beth Tavira e Dorgan Nogueira, coros, e interpretou as canções “Atu um njila”, “Kissueia”, “Lucinda”, “Mukulo”, “Miguel”, “Maria Rita”, “Estrangeiro”, “LikamboOyo”, “Ngui banza”, e “Madalena”.
Percurso
Filho de Domingos Pereira dos Santos e Cecília Agostinho, naturais da Funda, Icolo Bengo, Domingos Pereira dos Santos Júnior nasceu no dia 17 de Setembro de 1947, em Luanda, no bairro Marçal, e recordou que foi impelido para a música, de forma natural, inspirado na arte de um tio, irmão da mãe, que integrava um grupo carnavalesco de “Kazucuta”, no Bairro Rangel. O tio, Adão Agostinho, quando regressava a casa, tinha um comportamento que impressionava o então adolescente, Santos Júnior, quando, nos momentos de convívio, extraía sons “maravilhosos”, de forma curiosa, batendo e friccionando as mãos contra o peito, vocalizando, em falsete, os sons de uma corneta feita de lata, instrumento que nos remete, de forma automática, para os “funileiros”,
As canções de Santos Júnior estão gravadas na memória colectiva dos angolanos como uma marca inapagável sobre a realidade política
artífices suburbanos do carnaval luandense. Estamos em 1958, altura em que Santos Júnior frequentava, enquanto estudante, a Lagoa do Moreira no Bairro Marçal, local onde se concentravam os mais famosos grupos de Carnaval de Luanda: “União Kiela”, “Invejados” e “Cidrália”, incluindo outros grupos de referência. Santos Júnior cresceu neste ambiente musical, e, daí, foi a evolução progressiva de um percurso vertiginoso, que o levou a juntar-se a Manuel Domingos Jorge, irmão do falecido cantor e compositor Quim Jorge, ao Kito Jorge e Toneco. Com este grupo, Santos Júnior fez várias apresentações na Liga Nacional Africana. O salto posterior foi a sua integração no grupo “Mamukueno e seus kubanzas”, em 1963, e “Divúas do Ritmo”, em 1965. O primeiro grupo integrava o cantor Mamukueno, na voz principal, Flecha, viola baixo, Toneco, viola solo, Zitocas, tumbas e Santos Júnior, caixa e voz e o segundo integrava os músicos Artur Adriano, voz, Laurindo e Eugénio.
Carreira
Santos Júnior apareceu depois nos palcos dos “Kutonocas”, espectáculos itinerantes organizados por Luís Montez nas zonas suburbanas de Luanda, nas edições do”Dia do trabalhador” e da “Aguarela angolana”, no histórico Ngola Cine. Com a evolução técnica da generalidade dos instrumentistas angolanos, Santos Júnior começou a exigir mais de si, com o advento do 25 de Abril de 1974, e integrou o agrupamento “Kissanguela”, iniciando, nesta fase, o grande ciclo da canção revolucionária. Santos Júnior passou ainda pelo agrupamento “Muzangola”, com Calabeto, voz, Honorato, viola baixo e ritmo, Mário Silva, solo.
Bossa 70
Em 1971, Santos Júnior juntouse ao grupo Bossa 70, uma formação dirigida pelo mais velho Pedro Franco, um entusiasta e amante da música angolana, já falecido.
A primeira formação do Bossa 70 integrava o Benvindo Cunha, viola solo, Luís, tumbas, enteado do não menos célebre Nicolau Cangalheiro do Marçal, Tonecas, vocal e Velinho, viola baixo.
Quando Santos Júnior, tumbas e voz, entrou para Bossa 70 encontrou ainda o Tonecas, vocal, e Velinho , viola baixo. Entraram depois, Quental, viola solo, Zé Maria, viola ritmo, Zito, bongós, e Fefé, vocal. O período posterior ao Bossa 70 marcou a opção de Santos Júnior por uma carreira a solo.
Nesta época surgiu o grande sucesso, “Madalena”, gravado em 1973, nos estúdios da Valentim de Carvalho, com grupo Semba, uma selecção sazonal de músicos que integrava Ângelo Quental, viola solo, Mário Silva, viola ritmo, Carlitos Vieira Dias, viola baixo e Raúl Tolingas, percussão, uma canção da qual transcrevemos o texto integral: Talenu Madalena/Talenu Madalena/Talenu Madalena/UanhanaKia/Uexilekiámbote/ku bata diami/leIouatundu/ó kikialonhanakiá/Uexileku bita/ku dima diágajageira/Nga sanguele Madalena/Alo kumu beta/ó óuanhana fazenda/ó óuanhana fazenda...
Kissanguela
A designação “Kissanguela” foi criada por Elias diá Kimuezo, diz, convicto, Santos Júnior, que integrou o agrupamento no início da sua formação a tocar tumbas. O grupo que deu azo a aparição do “Kissanguela” apareceu pela primeira vez em público na Cidadela Desportiva em 1974, com a seguinte formação: Manuel Quental, viola solo, Massangano, viola ritmo, Manuel Claudino da Silva, Manuelito, viola baixo, Artur Adriano e Mário Silva, vozes, e Santos Júnior, nas tumbas e voz. Numa das primeiras digressões pelo Huambo, em 1974, com David Zé, Artur Nunes e Urbano de Castro, o falecido Candinho passou a substituir Santos Júnior, nas tumbas, por imperativos técnicos.
A segunda substituição aconteceu numa altura em que Manuel Quental, adoentado, afastou-se do agrupamento, tendo sido substituído pelo guitarrista Belmiro Carlos. Mais tarde, Adolfo, irmão do carismático guitarrista Duia, começou a fazer parte do grupo, substituindo o Massangano, na viola ritmo. O “Período Kissanguela”, que vai de 1974 a 1980, é, inquestionavelmente, uma das fases mais criativas da Música Popular Angolana. Neste célebre período, o agrupamento congregou, num só grito, várias vozes que cantaram a eclosão da liberdade e os efeitos da emoção da independência de Angola. Diríamos que foi a resposta, revolucionária e artística, da resistência à “longa noite colonial”.
Programa
A programação semanal de concertos da III Trienal de Luanda, aberta ao público com entradas livres, começou no dia 9 de Novembro, quarta-feira, com o grupo Kituxi, música tradicional, o cantor NdakaYoWiñi e a sua banda, afrojazz, Worsmith e banda, rap norteamericano, e a Banda Next, fusão.
Sábado foi a vez de Santocas, célebre cantor e compositor do período da canção revolucionária, que foi acompanhado pela Banda Movimento, Pascoal Mussungo, voz e violão, que subiu ao palco com, Bernardino Macanzo, teclas, Nguilas Nzasi, guitarra solo, António Bernardo, baixo, e Benilson Gabriel, na bateria.
O cartaz de domingo, dia 13 de Novembro, foi reservado, a partir das 17 horas, ao género gospel, com a subida ao palco do coral da Igreja Metodista Unida do Kapalanca, em Viana.