A rua onde moro
Quando chega Novembro, a rua onde moro fica linda. As acácias ao longo dos passeios se encharcam de flores vermelhas. E o contraste entre o azul do céu e o pólen sanguíneo das pétalas me pinta os olhos de emoção.
De manhã, saio para o trabalho. Lá está o miúdo Olho de Galinha (quem deu as alcunhas a todos ali na rua é uma madame muito gozona), com o seu olho esquerdo embaciado, a varrer a zona contígua. O Pata de Comboio vem sempre a sorrir, com o balde de água e o pano na mão, lavar os carros da zona. Depois do salu de lavagem e outros biscates de podar algumas árvores dentro dos quintais, vai ali à tasca do outro lado da rua varrer uma birras, na sequência de um bom mufete de carapau ou tilápia. Já bebeu bué noutros tempos. De tanto beber o kaporroto das ponteiras, num beco do Marçal onde uma mais velha tem um alambique, lhe inchou o pé direito e a madame gozona lhe alcunhou de Pata de Comboio. Dizem que matou o tio quando era militar e a única maneira de anestesiar o remorso persistente era nos vapores do kapuka.
O miúdo Olho de Galinha também tem a incumbência de retirar o lixo malevolamente depositado pelos vizinhos nos círculos das árvores e transporta-o para o contentor ao fundo da rua. A falta de civismo e de urbanidade de alguns vizinhos é de tal ordem que há alguns que, pela calada da noite, depositam sacos de lixo nas bocas das acácias que o Governo de Luanda abriu, quando se repavimentou os passeios, ao mesmo tempo que os chineses enterravam a nova canalização da água. Houve dias em que não conseguia entrar com o carro pelo portão de frente, tanto era o lixo que se acumulava até ao asfalto. Hoje, é o Olho de Galinha que assegura a vigilância ou, nos casos de impossibilidade física – ele não é noctívago – retira-o, no dia seguinte. É pago para isso.
Há ainda outros personagens que fazem parte daquele organismo vivo e dinâmico que é a rua onde moro. Por exemplo, o cão grande da vizinha das alcunhas, um cão já velho mas de olhar decidido, atrás das fêmeas que por ali passam e que ainda tem pernas para dar corrida nos outros cambuás intrusos. Tem meia dúzia de zungueiros no asfalto à entrada do meu quintal. Uns vendem fatos. Outros exibem óculos de sol. São os zairenses. Depois há os vendedores de limpa párabrisas, e os que vendem forros para os bancos dos carros e tapetes. Mais além, sentam-se os vendedores de chão de passeio, o rasta das missangas, a mãezinha do bombó frito, da jinguba torrada e banana-pão assada.
O meu coração tremia muito à noite, quando o vizinho do último andar do prédio ao lado organizava farras de fim-de-semana com um som de perfurar a alma. Felizmente, o vizinho, depois de nos estragar os tímpanos por longos anos, alugou o apartamento e foi morar no Sekele. Aiué, Muxima yetu da Santana ouviu as nossas preces!
Outra incumbência do Olho de Galinha é arrastar um pesado esquentador avariado para a entrada do portão do meu quintal, assim que saio para trabalhar. Os automobilistas que vão ao restaurante da esquina, e os que vão ao prédio ao lado, ou até os próprios vizinhos, não respeitavam o acesso do meu carro.
Tirando isso, a rua onde moro é um beijo dado na face de uma mãe.
Tem outras ruas de Luanda com as cores que a urbanização secular as embeleza. Tem a Rei Katyavala com as suas kaobas imponentes, secas no Cacimbo e com aquele verde-vivo nesta estação da Chuva. Pouca gente sabe, mas sobressai ali frente ao prédio da ANGOP uma árvore bem alta e grossa que dá jakas. Tem a HoChi-Min com o famigerado pauda-cobra (ainda vou desvendar o nome científico da árvore).
Há dias, visitei o viveiro do Kinaxixe e vi lá muitas das árvores que Luanda tem e de que precisa para se renovar. Fiquei triste. Decepcionado. Assediaram o viveiro de mudas de árvores do Kinaxixe de tal forma, que o local mais parece um acampamento de árvores deslocadas de guerra. É que a guerra que moveram ali, pelos espaços circundantes, foi de tal magnitude que apenas sobrou um minúsculo gueto de flora, mantida a custo de teimosia e persistência pelos trabalhadores que regam os saquinhos com as mudas das plantas a crescer.
Ocuparam o território à volta. Construíram ali residências, bem acabadas umas, a indiciar o proprietário bem posicionado no cumbú, outras feitas à tungangó, com o cano do esgoto a escorrer pelo declive que dá para a Rainha Jinga.
Ainda lá está o restaurante. A casa do guarda florestal do tempo colonial também lá está, mas há outra gente sem a autoridade de defender as árvores que havia no tempo do coló, ali a vegetar com as plantas, que ficamos sem saber se o Estado realmente tem mão no viveiro do Kinaxixe ou se há uma outra mão cabritivista a comer os paus.
Por isso é que eu gosto da rua onde moro. É uma rua livre. Algumas acácias morreram depois de mais de 50 anos a florir e a dar sombra. Os moradores da proximidade plantaram nos lugares de extinção das acácias outras espécies. Vê-se ali um tambarineiro. Além uma nimi (diz-se por aí “nem”, não sei porquê, se vem do inglês “neem”).
A chuva de Novembro tem vindo a cair, de caxexe, cantante, nos telhados de lusalite (há quem escreva e diga “rosalite”, não sei porquê, se não tem nada a ver com rosa). Quando a chuva cai, as flores oferecem as suas pétalas às gotas de água e vêm, de mãos dadas, cair no passeio e no asfalto. Eu saio de casa, nestas manhãs coloridas, e caminho sobre esse tapete vermelho de flores de acácia. Sou o rei da rua onde moro.