O nascimento das grandes cidades
As grandes cidades, pólos de atracção de pessoas de várias origens geográficas e sociais, constituem sempre, por isso mesmo, um mosaico de costumes, falares e cores que a vão transformando gradualmente até serem tidos como normais.
Luanda não é - jamais podia ser - excepção. Olhe-se para as grandes metrópoles e comprova-se isso. São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Lisboa, Paris, Nova Iorque são exemplos flagrantes desta realidade. Não há programas, nem Planos Directores, que impeçam as transformações. Quando muito podem dar-lhes alguma “arrumação”, mas sempre tendo em conta, e aceitando, determinadas metamorfoses, percebendo-as. Qualquer daquelas grandes cidades não eram o que são hoje se não tivessem acolhido gentes de outros lugares, com outras formas de viver, na maioria das vezes, pelo menos de início, mal aceites.
A grande alteração registada nas últimas décadas em Luanda tornase mais evidente por motivos que apenas não percebe quem não quer. A guerra devastadora que nos impuseram levou milhões de compatriotas a refugiarem-se na capital, a zona mais segura do país, transformando-a em todos os sentidos. O kaluanda acolheu-os. Viu-os ao lado da casa construírem “abrigos” de tábuas mal pregadas, chapas, papelões, oleados. A rua onde morava transformada em mercado de vender tudo o que era possível vender. Entrar-lhe no quintal, no almoço de sábado, cheiros de comida que não conhecia, falas que não entendia e foi solidário. Quando o caudal de trânsito aumentou barafustou, mas não os culpou. Aos poucos integrouos. Recebeu-lhes hábitos, uniram famílias, misturaram paladares e sons. Riram juntos. Juntos lamentaram a guerra que lhes roubou entes queridos, uniram sonhos de uma Pátria de paz, reconciliação, progresso. Ainda no tempo de emboscadas a qualquer momento os que vieram das províncias, principalmente os matuenses, quando eventualmente recebiam encomendas não foram egoístas. Retribuíram a solidariedade e repartiram-nas com o vizinho da capital.
Juntos comemoraram o calar dos tiros e de mãos dadas começaram a reconstruir o país, tornaram transitáveis os caminhos minados, reergueram pontes, escolas, hospitais, refizeram cidades, embelezaram-nas. Quando o kaluanda perguntava aos fugidos da guerra por que não voltavam à terra e deixavam a confusão da capital, muitos respondiam-lhe com convicção que a terra deles “agora é Luanda e os filhos, até netos, já nasceram aqui, não dá mais para começar tudo de novo”. Tinham razão. São eles, também, que estão a fazer nascer a nova Luanda, a grande metrópole, com todos os prós e contras, como todas as outras de qualquer parte do mundo. Bem à maneira angolana, quando se visitam na hora de se encontrarem gostam de falar “como é família?” e na despedida “estamos juntos”.
Os filhos de ambos estudaram nas mesmas escolas, nas mesmas universidades, gostam de hambúrgueres, pizzas, colas, kuduro, tarrachinha, guetto zouk e riem dos pais que não dispensam os almoços de sábado que terminam quando a lua já está cansada, jogam sueca e revivem farras de boleros, sembas e tangos, muitas vezes em salões de terra batida. Borrifada, para não levantar poeira.
A nova Luanda que está a nascer não é somente a das centralidades, arranha-céus, centros comerciais, hotéis, restaurantes, vias rápidas, zungueiras que não zungam e vendem sentadas no passeio, vendedoras de saldos que transaccionam dinheiro que falta nos bancos e casas de câmbio, carros que não andam nas horas de ir trabalhar e regressar a casa, trafulhas, corruptos e corruptores. É também a do cruzamento de falas, cheiros, sabores, cores, hábitos - trazidos, encontrados, inventados - , de mudanças irreversíveis. Sempre com esperança e um sorrido nos lábios, mesmo em alturas de ter raivas e vontade de chorar.
As grandes cidades nascem assim. Mesmo que o parto seja doloroso e prolongado. Luanda não foge à regra.