Crónica de Luis Alberto Ferreira
Olhem se o avião do desditoso Chapecoense tivesse matrícula … africana! Estivesse ao serviço de uma companhia com sede, eu não diria em Pango Aluquém, em Dumba Cambango, mas, enfim, na capital do Ghana, vamos lá … Seria um ai Jesús salpicado de alusões ao “subdesenvolvimento”, ao “atraso”, à “falta de preparação para estas coisas”. Urge, todavia, frisar que a reacção brasileira e internacional ao infortúnio do Chapecoense foi, de longe, superior ao da projecção das insígnias do clube de Santa Catarina. Tensando um pouco mais a corda poderíamos, sim, aludir à “diferença” mediática e sensitiva entre a queda de um avião com 22 futebolistas e a de um avião com 22 mineiros ou 22 … “comunistas”. O maior dado adquirido é que aconteceram “coisas do outro mundo” em toda esta história do avião cujo esbarrondamento, em território da Colômbia, originou a morte de 71 pessoas. A notícia já correu mundo e toda a gente sabe que a equipa de futebol do Chapecoense, praticamente, desapareceu. Foi assim, em absoluto, com o chamado Grande Torino, a 4 de Maio de 1949, e não tanto assim mas quase com o Manchester United a 6 de Fevereiro de 1958. Decorre, agora, um assinalável movimento de solidariedade assumido por pessoas singulares e colectivas. O futebolista brasileiro Ronaldinho Gaúcho ofereceu-se para vestir a “malha” do Chapecoense e clubes da Argentina disponibilizariam jogadores para a mesma finalidade. (Os argentinos “têm” um certo protagonismo no rescaldo da tragédia do Chapecoense. Por um lado, para vergonha de todos: apareceu um fascista qualquer repescado da ditadura que matou na Argentina milhares de pessoas a tachar de demagogos os dirigentes e futebolistas do Nacional da Colômbia que sugeriram a atribuição imediata do título “Copa das Américas” - ao Chapecoense. Por outro, palavras fortes de Diego Maradona e a postura da maior parte dos clubes demonstram que no país das pampas há como em todo o lado gente boa e gente má. A queda do avião guarda, entretanto, um outro elemento relacional com o país de Maradona: a companhia aérea, ou algo do género, a que pertencia o avião sinistrado, contava entre os seus clientes a selecção nacional da Argentina, Messi e outros “muchachos” que o pessoal conhece).
Tratemos então das verdadeiras “coisas do outro mundo” relacionadas com a tragédia que arrasou o Chapecoense. Para começar, as primeiras “declarações”. As proferidas a quente pelo sr. Copetti, “director de comunicação” do clube, foram de auto-justificação e sem qualquer sentido. Disse ele que a companhia proprietária do avião “tinha experiência no transporte de desportistas” e que, por isso, era confiável. Mais: o sr. Copetti explicou que o avião sinistrado “era do mesmo tipo dos aviões usados pela família real de Inglaterra” e, portanto, “um avião seguro” (!!!). Das duas, uma: ou a família real de Inglaterra tem mesmo muita sorte, ou os aviões preferidos da família real de Inglaterra só estão disponíveis para cair quando a bordo viajam futebolistas do Chapecoense. Como vimos atrás, a selecção de futebol da Argentina dá-se muitíssimo bem, segundo o sr. Copetti, com os aviões da empresa que tramou o Chapecoense. No entanto, ainda em Novembro, o voo da empresa Lamia que levou a selecção da Argentina ao Brasil “terá chegado a Belo Horizonte com apenas 15 minutos mais de autonomia”. O vice-presidente do Chapecoense também não acompanhou a equipa. Se calhar, nem ele, Ivan Tozzo, nem o sr. Capetti, confiariam muito no avião, pertencente a uma companhia privada com um historial jurídico de arrepiar os cabelos. Horas depois de o sr. Capetti ter feito a virtual absolvição técnico-funerária do avião sinistrado, surgiu o sr. Tozzo, o presidente, a desdizer. Afirmou ele: “Estou indignado! O avião caíu porque não tinha o combustível suficiente para chegar a Medellín! Vou chamar os advogados para que tomem medidas legais!”. De facto, o director-geral da Segurança Aérea da Colômbia, Freddy Bonilla, afirmava pouco depois que o avião acidentado “não contava com o combustível de segurança estabelecido pelas normas”. As coisas pioraram quando a Direcção-Geral de Aeronáutica Civil da Bolívia suspendeu as respectivas autorizações de voo. Preâmbulo de ordens posteriores da Justiça boliviana que meteram na cadeia o actual director da companhia aérea, Gustavo Vargas. Como nasceu a companhia? De um parto complicadíssimo. A ideia da criação da “Linha Aérea Mérida Internacional de Aviação LaMia” (vulgo Lamia), partiu de um tal Ricardo Vidal, empresário muito ágil a espreitar e a movimentar-se na província de Mérida, Venezuela. Ele convenceu o governador da província, Marcos Díaz, de que a ideia se destinava a “impulsionar o turismo regional”. Em Agosto de 2009, o empresário alugou o primeiro avião, um “ATR72212”. Como ele nem de autorização dispunha para operar, o avião foi devolvido ao “arrendador” e o projecto … abandonado. Vidal voltou à carga em 2011, alugou um “Avro RJ-85” para voos domésticos mas “aterrou” de novo na falta de autorização - e o projecto voltou a ser abandonado! Vidal insistiu em Novembro de 2013. “Descobriu” um aeroporto disponível na ilha Margarita e contou com o “apoio” de mais um governador regional, de apelido Figueroa. Para nada, afinal: tropeçou de novo nas autoridades! Em 2015, portanto no ano passado, Vidal pegou nas tralhas e foi para Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Conseguiu, desta vez! Para desgraça do Chapecoense. Imaginem: dos quatro aviões “Avro RJ85” da Lamia, um esfumou-se na tragédia que enlutou o pequeno clube, outro está “guardado” e os outros dois “retirados”. O maximário irresponsável e aproveitacionista do campo da “iniciativa privada” exibe aqui a sua faceta mais repugnante. As vidas perdidas na tragédia do Chapecoense foram o preço de uma bem conhecida praxologia burlona de esquemas - para poupar nos requisitórios da segurança e bem-estar dos cidadãos e multiplicar lucros … doa a quem doer.