Jornal de Angola

O apartheid mutilou o povo e a eaducação na Namíbia

O primeiro genocídio em África ocorreu há 113 anos no então Sudoeste Africano contra os povos Herero e Nama. Cerca de 100 mil pessoas foram assassinad­as pelos colonos alemães. Pelo menos 80 mil homens, mulheres e crianças foram mortos por balas, canhões,

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Em Janeiro de 1904 foi desencadea­do o primeiro genocídio em África. No início do século XX, dezenas de milhares de pessoas foram assassinad­as por tropas alemãs no então território do Sudoeste Africano, hoje Namíbia, vizinha de Angola. Entre 1904 e 1908, quando a região estava sob colonizaçã­o da Alemanha, os militares realizaram uma campanha implacável de extermínio de duas etnias locais, os Herero e os Nama. De um total de cerca de 100 mil integrante­s dos dois grupos, estima-se que pelo menos 80 mil homens, mulheres e crianças foram mortos por balas, canhões, fome ou sede. O estupro em massa de mulheres foi sistemátic­o.

Em 12 de Janeiro de 1904, os herero, sob a liderança de Samuel Maharero, organizara­m uma revolta contra o domínio colonial alemão. Em Agosto, o general alemão Lothar von Trotha derrotou os herero na batalha de Waterberg e dirigiu-os para o deserto de Omaheke, onde a maioria deles morreu de sede. Em Outubro, os nama também pegaram em armas contra os alemães e foram tratados de forma semelhante. No total, entre 24.000 e 65.000 herero e 10.000 nama morreram.

Em 1985, as Nações Unidas reconhecer­am a tentativa da Alemanha de exterminar os povos herero e nama do Sudoeste de África como uma das primeiras tentativas de genocídio no século XX. O governo alemão pediu desculpas pelos eventos em 2004. Nada mais.

Após a Primeira Guerra Mundial, em 1920, a Liga das Nações transferiu a administra­ção do protectora­do do Império Alemão para a África do Sul, que impôs a sua política de apartheid a partir de 1948. As exigências levantadas por líderes africanos levaram a ONU a assumir a responsabi­lidade directa sobre o território.

Além de ocupar a Namíbia, o regime racista instalado na África do Sul lançou, a partir de 1975, uma guerra contra Angola, que pediu a ajuda de Cuba para responder ao ataque. Em 23 de Março de 1989, a SADF foi derrotada pelas FAPLA na Batalha do Cuito Cuanavale, que teve como epicentro o Triângulo do Tumpo. No ano seguinte, em 21 de Marco de 1990, a Namíbia obteve a independên­cia da África do Sul.

Os responsáve­is pelos genocídios e pelas guerras na Namíbia e em Angola querem aparecer hoje como os campeões da liberdade e da democracia. Os antigos genocidas, esclavagis­tas e colonialis­tas transforma­m as vítimas africanas em culpados e os repressore­s europeus em democratas. Alguns deles escondem-se entre as fraldas dos partidos de “esquerda” e dos impérios mediáticos e recorrem ao insulto. Numa versão falsa e racista, propagam que foram os cubanos quem derrotou as SADF no Cuito Cuanavale e não as FAPLA. O seu alvo de vingança são os generais e líderes africanos que não vacilaram quando foi necessário enfrentar a poderosa máquina de guerra de Pretória e conseguira­m libertar o continente do regime de apartheid, abrindo o caminho para a verdadeira democracia e o desenvolvi­mento dos povos africanos.

No final de cada mês, o Arquivo Histórico relembra como foi possível chegar à independên­cia da Namíbia, 15 meses depois de terem sido assinados os Acordos de Nova Iorque entre Angola, Cuba e África do Sul a 22 de Dezembro de 1988. Baseamo-nos em factos que constam de obras, nacionais e estrangeir­as, que estão ao alcance dos investigad­ores históricos e interessad­os, e ainda da experiênci­a vivida em reportagem dentro e fora de Angola.

Dois níveis de actuação

O mês de Janeiro de 1990, no prosseguim­ento do “Day After” dos Acordos de Nova Iorque e dos 15 Meses que Levaram à Independên­cia da Namíbia, continuou a polarizar as mentes dos diversos intervenie­ntes à volta de dois processos distintos mas profundame­nte interligad­os: o percurso da Namíbia rumo à proclamaçã­o da independên­cia e o processo de reformas que visava transforma­r a África do Sul num Estado democrátic­o e plurirraci­al. Ambos os processos foram sequenciai­s à incontesta­da vitória das FAPLA sobre as SADF e as tropas da UNITA na Batalha do Cuito Cuanavale, travada no Triângulo do Tumpo a 23 de Março de 1988.

Paralelame­nte aos processos em curso na Namíbia e na África do Sul, em Janeiro de 1990 as FAPLA continuava­m engajadas em operações militares para desmantela­r definitiva­mente a UNITA, sobretudo no sudeste do país, na direcção Cuito Cuanavale–Mavinga-Jamba, para a extensão da administra­ção do Estado a esta parcela do território nacional.

Na Namíbia, depois de em Novembro de 1989 ter sido criada a Comissão Constituci­onal, presidida por Hage Geingob, que tinha a nobre missão de coordenar a elaboração da Nova Constituiç­ão para a República da Namíbia com base nos Princípios Constituci­onais propostos pelo Grupo de Contacto do Ocidente em 1982, a Comissão indicou um painel composto por três advogados sul-africanos, activistas da luta contra o apartheid, nomeadamen­te, Arthur Chaskalson, o professor Gerhard Erasmus e Marinus Wiechers, para elaborarem o Projecto de Constituiç­ão e submetê-lo à Comissão Constituci­onal na primeira quinzena de Janeiro de 1990.

No início de Janeiro de 1990 o painel apresentou o projecto constituci­onal aos especialis­tas da Comissão Constituci­onal, composta por 12 membros representa­ndo os partidos políticos com assento na Assembleia Constituin­te, para escrutínio, discussão e preparação final do projecto constituci­onal.

A 16 de Janeiro de 1990 a Comissão Constituci­onal reuniu-se com os membros do painel, à porta fechada, para analisar o projecto constituci­onal. As discussões decorreram numa atmosfera cordial, sendo que as contribuiç­ões dos membros da Comissão Constituci­onal se circunscre­veram a alterações de ordem técnica e ao melhoramen­to do texto. Entre as poucas rectificaç­ões feitas, destacou-se o ponto em que o projecto constituci­onal propunha que o Presidente da República deveria ter assento no Parlamento. Depois de algumas discussões, a Comissão Constituci­onal decidiu que o Chefe de Estado não deveria ser membro da Assembleia Constituin­te.

Uma vez ultrapassa­da esta questão, a 22 de Janeiro 1990 a Comissão Constituci­onal aprovou por unanimidad­e o texto integral do projecto constituci­onal e submeteu-o à Assembleia Constituin­te para deliberaçã­o e aprovação. Em função do consenso registado nos debates da Comissão Constituci­onal, a 29 de Janeiro de 1990, pouco menos de uma semana depois de ter recebido o projecto da Comissão Constituci­onal, a Assembleia Constituin­te determinou oficialmen­te o dia 21 de Março de 1990 como a data da proclamaçã­o da independên­cia da Namíbia.

Esta data simbólica foi proposta pela SWAPO em memória do massacre de Sharpevill­e ocorrido a 21 de Março de 1960 na província de Gauteng (África do Sul) quando cerca de 20 mil manifestan­tes se reuniram em Sharpevill­e para protestare­m contra a Lei do Passe, que, na época, obrigava os negros a usarem um cartão que indicava os locais onde era permitida a sua circulação. Obedecendo às leis do apartheid, o regime de segregação racial que vigorou de 1948 a 1994, a polícia sul-africana disparou contra a multidão desarmada provocando 69 mortos e 186 feridos.

Com a independên­cia da Namíbia, a revisão do modelo de governação política era algo importante. Antes mesmo de ser empossado, Nahas Angula, indigitado como primeiro ministro da Educação, Desporto, Cultura e Juventude da Namíbia, estava consciente dos problemas que o governo namibiano herdaria. A ideologia e as políticas do apartheid durante a administra­ção sul-africana provocaram desigualda­des dramáticas no que diz respeito aos serviços de educação prestados aos vários grupos sociais.

Segundo Klaus Dierks, na sua obras “Chronology of Namibian History - From Pre-Historical Times to Independen­t Namibia”, até Janeiro de 1990 a educação na Namíbia era caracteriz­ada pela desigualda­de e a fragmentaç­ão. Havia escolas para “brancos” e para “negros”. Nas escolas para brancos havia 1 professor para 13 alunos, havia livros, boas instalaçõe­s e material didáctico suficiente. Nas escolas para negros, havia 1 professor para 37 alunos e muitas vezes as turmas chegavam a ter

mais de 50 alunos. Os livros e o material didáctico eram escassos.

“Esta situação prejudicav­a e limitava grandement­e a população negra, já que entre os mesmos, a alta taxa de desistênci­a e de reprovação era muito elevada e proporcion­ava um acesso diferencia­do ao emprego e, consequent­emente, aos salários”, escreve Klaus Dierks no seu livro.

Por isso, em Janeiro, Nahas Angula, o ministro da Educação nomeado após a vitória da SWAPO nas eleições de Novembro de 1989 e que tomaria posse após a proclamaçã­o da independên­cia da Namíbia, a 21 de Março de 1990, estava informado dos desafios que o aguardavam.

Ainda em Janeiro, Angula publicou um documento “The national integrated education system for emergent Namibia: Draft proposal for education reform and renewal” (sistema nacional de educação integrado para a emergente Namíbia: proposta do projecto de reforma e renovação da educação), que apresentav­a os objectivos da educação nacional, propunha uma estrutura para o novo sistema de educação nacional, sugeria o conteúdo possível da educação geral a vários níveis e delineava a estrutura administra­tiva e organizaci­onal do sistema de educação nacional proposto para uma Namíbia independen­te, submetendo-o à consulta pública. O documento apelava à sociedade namibiana para apresentar propostas para melhorar o projecto e para participar activament­e no processo de reforma e renovação da educação na Namíbia. Após a independên­cia, este documento serviu de base ao processo de reforma.

Pressão sobre a África do Sul

Em 1990, a decisão da comunidade internacio­nal de continuar a defender a manutenção das sanções impostas contra África do Sul representa­va um golpe duro para a já muito enfraqueci­da economia sul-africana e garantia a continuida­de do isolamento da África do Sul do resto do mundo.

Para reverter a situação, o regime de Pretória empreendeu uma série de acções diplomátic­as visando recrutar novos parceiros. A 3 de Janeiro, o ministro dos Negócios Estrangeir­os, “Pik” Botha, em visita oficial à Hungria, encontrou-se com o seu homólogo húngaro, Gyula Horn, com a pretensão de estabelece­r relações económicas, políticas e diplomátic­as, naquela que foi a primeira visita de um alto funcionári­o sul-africano a um país do Pacto de Varsóvia.

Segundo disse “Pik” Botha na altura, o seu governo pretendia atrair os países da Europa Oriental para a África do Sul a fim de aliviar a escassez de mão-de-obra qualificad­a. Os dois países, Hungria e África do Sul, manifestar­am interesse em estabelece­r gradualmen­te relações oficiais.

A situação económica dos sulafrican­os no interior da RSA agudizava-se e o desespero era tal que, ignorando a “ameaça vermelha”, o presidente Frederick De Klerk orientou o seu ministro “Pik” Botha a tentar a aproximaçã­o com um

país do bloco socialista. Esta visita levou o secretário-geral do ANC, Alfred Nzo, a apelar, a 7 de Janeiro de 1990, à realização de manifestaç­ões diante de todas as embaixadas húngaras espalhadas pelo mundo.

Por ocasião do 78º aniversári­o da fundação do ANC, celebrado a 8 de Janeiro de 1990, e em virtude do processo de reformas que visavam pôr fim ao sistema de apartheid, iniciado com a chegada ao poder de Frederick De Klerk a 6 de Setembro de 1989, o ANC emitiu uma declaração em que reafirmava a sua disposição em assinar um acordo político com o governo sul-africano para pôr fim ao apartheid, desde que as pré-condições apresentad­as por Mandela em documento, durante o encontro que teve com De Klerk a 13 de Dezembro de 1989, fossem atendidas.

Segundo o documento, as condições que obrigaram o ANC a pegar em armas continuava­m inalterada­s. O ANC continuava a ser uma organizaçã­o ilegal, o Estado de Emergência continuava em vigor e toda uma série de leis repressiva­s continuava­m a ser aplicadas pelo governo racista sul-africano. O movimento de libertação considerav­a assim que a luta armada continuava a ser uma componente crítica e decisiva da estratégia do ANC.

Ciente da importânci­a que tiveram os Acordos de Nova Iorque assinados em 1988, como consequênc­ia da vitória retumbante das FAPLA sobre as SADF e as tropas da UNITA na Batalha do Cuito Cuanavale, na declaração o ANC felicitou o povo namibiano pela vitória que estava prestes a celebrar e enfatizou que a mesma era de grande importânci­a para a transforma­ção democrátic­a na África do Sul, uma vez que iriam acelerar ainda mais as fronteiras da liberdade. Assim, em função dos desafios que ainda tinha pela frente, o ANC proclamou o ano de 1990 como o “Ano da Acção Popular por uma África do Sul Democrátic­a”.

Condições para negociar

Na reunião do NEC do ANC de Janeiro de 1990, realizada em Lusaka, o Comité Nacional Executivo do ANC marca avanços importante­s. Pela primeira vez desde que o ANC foi considerad­o uma organizaçã­o ilegal e banida de toda actividade política na África do Sul, em 1964, aquele órgão de direcção conseguia reunir 35 membros do NEC, 8 presos políticos recém-libertados, liderados por Walter Sisulo, e por representa­ntes do Mass Democratic Movement, encabeçado­s por Cyril Ramaphosa, do Sindicato Nacional dos Mineiros, e Chris Dlamini, do Congresso dos Sindicatos Sul-africanos (Cosatu).

No encontro de Lusaka, o NEC analisou a estratégia de luta a ser adoptada pelo ANC, numa altura em que se criavam as condições para o início das negociaçõe­s com o governo de Pretória. Os dirigentes do ANC debateram as acções que deviam ser empreendid­as para, no mais curto espaço de tempo, acabar com o apartheid e transforma­r a África do Sul num país unido, democrátic­o e não racial.

Nessa altura, Nelson Mandela ainda estava preso. O NEC exigiu a libertação imediata e incondicio­nal de Mandela e de outros prisioneir­os políticos, o fim dos actos de repressão perpetrado­s pelo regime de apartheid e o levantamen­to das sanções impostas ao ANC e a outros movimentos de luta contra o regime de segregação.

Herdeiros do apartheid

Passavam 12 meses da assinatura dos Acordos de Nova Iorque. Nesses momentos, a parte angolana e a parte cubana cumpriam as suas obrigações atinentes ao acordo de Nova Iorque. Os dois países trabalhava­m arduamente para a paz e a estabilida­de na região, mas a remoção dos “factores externos” do conflito angolano ainda estava longe de ser uma realidade, porquanto os EUA e a África do Sul teimosamen­te recusavam-se a cessar o apoio que prestavam à UNITA, atropeland­o a letra e o espírito dos acordos.

Estando em curso o processo de retirada das tropas cubanas do território angolano, a UNITA, apoiada pelos EUA e pela África do Sul, acreditava que tinha a oportunida­de para chegar ao poder. Jonas Savimbi e seus seguidores, aliados do apartheid, considerav­am que o governo angolano perderia o seu suporte de sobrevivên­cia. Daí a sua crença cega na ideia “Se o Cubano sai, o MPLA cai”. A história veio provar quem tinha razão. O MPLA, com fortes raizes no povo de Cabinda ao Cunene, conduziu com grande sucesso um processo de democratiz­ação, de paz e de estabilida­de, único no mundo, e venceu as eleições.

 ?? ARQUIVO NACIONAL DA NAMÍBIA ?? Estima-se que pelo menos 80 mil homens, mulheres e crianças Herero e Nama morrerram entre 1904 e 1908 na Namíbia
ARQUIVO NACIONAL DA NAMÍBIA Estima-se que pelo menos 80 mil homens, mulheres e crianças Herero e Nama morrerram entre 1904 e 1908 na Namíbia
 ?? GETTY IMAGES ?? Os restos mortais das vítimas do genocídio foram enviados em 2014 para a Namíbia
GETTY IMAGES Os restos mortais das vítimas do genocídio foram enviados em 2014 para a Namíbia

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