A memória genética
Sim. A memória que se imagina ter existido e por isso não a podemos recordar ou quem sabe se existe e um dia a ciência poderá registar a memória de cada um aquando da estadia no ventre materno.
Nem mesmo quando passamos de feto a pessoa, a partir do momento em que não é permitido, salvo excepções, que seja interrompida a nossa existência dentro da barriga materna. Nem aí podemos falar em memória placentária. Mas quem sabe se existe e que daqui a não sei quanto tempo cada ser humano poderá, recorrendo à informática e obter através do seu telefone celular ou computador, sinais da sua memória placentária o armazenamento de sinais, dos primeiros sinais do nosso cérebro, antes da aprendizagem da poética de sugar o seio, arrotar, sair do sincretismo, aprender os sentidos, medir o espaço iniciando a memória de procedimentos e a memória declarativa.
E os elefantes? Pelo menos terão uma memória hereditária, pois fugiram da guerra, foram viver para muito longe. E acabada a guerra voltaram pela memória. E também, quando muito velhos, dizem que sabem o caminho e rumam para o cemitério.
Hoje, há estudos científicos de como funciona o sistema de processamento de informações do ser humano, tendo em conta os processos de comunicação, os cinco sentidos. Mas não é isso que nos importa. Da memória que temos. É mais das coisas que vivemos e recordamos com amor, de poemas ou parte de poemas, ou frases que ficaram no nosso registo.
Há pessoas que têm mais memória, outras que fazem exercícios para aumentarem o grau de percepção e armazenamento mediante técnicas. Na minha infância, aprendíamos as letras, pela voz alta de quem ensinava passando do visual para o armazenamento e a tabuada, para aprendermos a multiplicar era cantando que aprendíamos o dois vezes um dois.
É pela memória que se aprende a mentir. É também pela memória que se cria para além da memória. Assim acontece com os contadores de estórias, mujimbeiros ou griôs da oratura na poesia e na ficção em literatura, na música, na dança, na pintura ou na escultura.
Antigamente era preciso decorar todo o teorema da vida, hoje basta saber a súmula prática da sua utilização, melhor, basta saber demandar na net que funciona como a memória a que a gente do meu tempo foi obrigada a armazenar saberes que agora são inúteis porque, por exemplo, coisas da química e física daquele tempo já estão ultrapassadas e não servem para nada, E a memória dos jovens de hoje tem mais espaço livre para armazenamento e, por isso, disponibiliza-se para as redes sociais e similares.
Há memória de coisas que só foram vividas por uma geração e não se repetem. Como o dia da Dipanda. O registo é para ensinar às gerações seguintes, quando é certo que os valores da juventude se alteraram face às alterações da sociedade. É uma espécie de predisposição para a amnésia.
A memória das coisas tristes e das coisas alegres que vivemos. Das vezes em que devíamos ter dito não e tivemos medo, exactamente, a memória das vezes em que tivemos medo, em que tivemos dúvidas.
Falo nisto porque a semana passada li a notícia da morte de Diógenes Boavida. E fui à memória buscar o tempo do Governo de Transição. Ele era Ministro da Justiça, eu da Comunicação Social. No conselho de ministros estava um colégio presidencial com um membro de cada Movimento (FNLA, MPLA e UNITA) mais o Alto-Comissário português. Eu tinha, dentro da pasta, uma maquineta que dando à corda antes, quando carregasse num botão desatava à gargalhada. E usava isso quando alguém pronunciava intervenções fora do lugar e do sentido. Quando a maquineta desatava à gargalhada era o silêncio de uns, a indignação de outros e o pânico do baixo comissário, sempre de cigarro na mão a tremer, um desadiantado mental, odiando a comunicação até conseguir parar a programação da Emissora Oficial (hoje Rádio Nacional) e regressado à Melói, escrevendo um livro onde entre outras sarrabulhadas diz que eu havia sido preparado na União Soviética... onde, naquele tempo, nem sequer nunca lá estivera... voltara de Coimbra! No entanto tinha dois camaradas que se riam acompanhando a minha maquineta. O Saydi Mingas e o Diógenes que faleceu com a doença de Alzheimer. Doença neuro-degenerativa com declínio das funções cognitivas, chegando ao ponto em que o paciente não conhece ninguém nem se conhece a si próprio nem tão pouco o sofrimento que se transfere para os parente ou amigos que dele cuidam.
Por isso lembrei-me que o Diógenes foi estudar direito em Coimbra onde se licenciou. Aí jogou na Académica e depois para o Porto. Quando saiu daqui para estudar, conhecia bem as linhas vermelhas difusas e disfarçadas do racismo. Um dia o Porto veio jogar a Luanda. A maioria dos colonos de Luanda era desse clube, daí o Futebol Clube de Luanda... da cidadela.
Ele contava isto com um prazer de felicidade infantil. Fez um remate como nunca e golo quase no fim a dar a vitória ao Porto. No fim, os brancos andaram com ele aos ombros festejando a vitória!
Hoje, levo-te nos meus ombros, escondido na solidão da lágrima.