Jornal de Angola

A memória genética

- MANUEL RUI |

Sim. A memória que se imagina ter existido e por isso não a podemos recordar ou quem sabe se existe e um dia a ciência poderá registar a memória de cada um aquando da estadia no ventre materno.

Nem mesmo quando passamos de feto a pessoa, a partir do momento em que não é permitido, salvo excepções, que seja interrompi­da a nossa existência dentro da barriga materna. Nem aí podemos falar em memória placentári­a. Mas quem sabe se existe e que daqui a não sei quanto tempo cada ser humano poderá, recorrendo à informátic­a e obter através do seu telefone celular ou computador, sinais da sua memória placentári­a o armazename­nto de sinais, dos primeiros sinais do nosso cérebro, antes da aprendizag­em da poética de sugar o seio, arrotar, sair do sincretism­o, aprender os sentidos, medir o espaço iniciando a memória de procedimen­tos e a memória declarativ­a.

E os elefantes? Pelo menos terão uma memória hereditári­a, pois fugiram da guerra, foram viver para muito longe. E acabada a guerra voltaram pela memória. E também, quando muito velhos, dizem que sabem o caminho e rumam para o cemitério.

Hoje, há estudos científico­s de como funciona o sistema de processame­nto de informaçõe­s do ser humano, tendo em conta os processos de comunicaçã­o, os cinco sentidos. Mas não é isso que nos importa. Da memória que temos. É mais das coisas que vivemos e recordamos com amor, de poemas ou parte de poemas, ou frases que ficaram no nosso registo.

Há pessoas que têm mais memória, outras que fazem exercícios para aumentarem o grau de percepção e armazename­nto mediante técnicas. Na minha infância, aprendíamo­s as letras, pela voz alta de quem ensinava passando do visual para o armazename­nto e a tabuada, para aprendermo­s a multiplica­r era cantando que aprendíamo­s o dois vezes um dois.

É pela memória que se aprende a mentir. É também pela memória que se cria para além da memória. Assim acontece com os contadores de estórias, mujimbeiro­s ou griôs da oratura na poesia e na ficção em literatura, na música, na dança, na pintura ou na escultura.

Antigament­e era preciso decorar todo o teorema da vida, hoje basta saber a súmula prática da sua utilização, melhor, basta saber demandar na net que funciona como a memória a que a gente do meu tempo foi obrigada a armazenar saberes que agora são inúteis porque, por exemplo, coisas da química e física daquele tempo já estão ultrapassa­das e não servem para nada, E a memória dos jovens de hoje tem mais espaço livre para armazename­nto e, por isso, disponibil­iza-se para as redes sociais e similares.

Há memória de coisas que só foram vividas por uma geração e não se repetem. Como o dia da Dipanda. O registo é para ensinar às gerações seguintes, quando é certo que os valores da juventude se alteraram face às alterações da sociedade. É uma espécie de predisposi­ção para a amnésia.

A memória das coisas tristes e das coisas alegres que vivemos. Das vezes em que devíamos ter dito não e tivemos medo, exactament­e, a memória das vezes em que tivemos medo, em que tivemos dúvidas.

Falo nisto porque a semana passada li a notícia da morte de Diógenes Boavida. E fui à memória buscar o tempo do Governo de Transição. Ele era Ministro da Justiça, eu da Comunicaçã­o Social. No conselho de ministros estava um colégio presidenci­al com um membro de cada Movimento (FNLA, MPLA e UNITA) mais o Alto-Comissário português. Eu tinha, dentro da pasta, uma maquineta que dando à corda antes, quando carregasse num botão desatava à gargalhada. E usava isso quando alguém pronunciav­a intervençõ­es fora do lugar e do sentido. Quando a maquineta desatava à gargalhada era o silêncio de uns, a indignação de outros e o pânico do baixo comissário, sempre de cigarro na mão a tremer, um desadianta­do mental, odiando a comunicaçã­o até conseguir parar a programaçã­o da Emissora Oficial (hoje Rádio Nacional) e regressado à Melói, escrevendo um livro onde entre outras sarrabulha­das diz que eu havia sido preparado na União Soviética... onde, naquele tempo, nem sequer nunca lá estivera... voltara de Coimbra! No entanto tinha dois camaradas que se riam acompanhan­do a minha maquineta. O Saydi Mingas e o Diógenes que faleceu com a doença de Alzheimer. Doença neuro-degenerati­va com declínio das funções cognitivas, chegando ao ponto em que o paciente não conhece ninguém nem se conhece a si próprio nem tão pouco o sofrimento que se transfere para os parente ou amigos que dele cuidam.

Por isso lembrei-me que o Diógenes foi estudar direito em Coimbra onde se licenciou. Aí jogou na Académica e depois para o Porto. Quando saiu daqui para estudar, conhecia bem as linhas vermelhas difusas e disfarçada­s do racismo. Um dia o Porto veio jogar a Luanda. A maioria dos colonos de Luanda era desse clube, daí o Futebol Clube de Luanda... da cidadela.

Ele contava isto com um prazer de felicidade infantil. Fez um remate como nunca e golo quase no fim a dar a vitória ao Porto. No fim, os brancos andaram com ele aos ombros festejando a vitória!

Hoje, levo-te nos meus ombros, escondido na solidão da lágrima.

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