Jornal de Angola

Educação pela dor

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA |

Li há dias a polémica notícia sobre a descrimina­lização da violência doméstica na Rússia. A lei promulgada pelo presidente Vladimir Putin, no passado dia 7, representa um recuo nas conquistas dos direitos das mulheres russas. A promulgaçã­o dessa lei é a realização prática do título de uma obra de Vladimir Lenine, “Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás”, publicado em 1904. O passo em frente foi a penalizaçã­o da violência doméstica, que, em todo o planeta, tem como principal vítima a mulher e, por dinâmica umbilical, a criança.

Os dois passos atrás foram dados pelo próprio poder legislativ­o, ao autorizar “agressões cometidas numa família quando estas não causarem sequelas graves nem tiverem antecedent­es”. Esta atitude representa um retrocesso do direito russo ditado por mentes ostensivam­ente machistas. Representa, igualmente, dois passos atrás nas conquistas globais alcançadas, com imenso sacrifício, pelo reconhecim­ento dos direitos humanos.

Tenho em mãos um relatório das Nações Unidas, abrangendo 190 países, que refere que, no ano de 2012, uma em cada três adolescent­es casadas, ou aproximada­mente 84 milhões, sofreram alguma violência emocional, física ou sexual por parte de seus maridos. Na sua parte mais dramática, constatou o relatório que 95 mil mulheres com menos de 20 anos, casadas ou não, foram assassinad­as em todo o mundo, no mesmo ano. Compilando o relatório, ficamos a saber que a violência contra crianças e adolescent­es tem crescido no mundo.

Dados do UNICEF, referentes ao mesmo período, mostram-nos que nas crianças de 2 a 14 anos, 6 a cada 10 já sofreram algum tipo de punição física muito dolorosa da parte dos pais ou pessoas responsáve­is por cuidar delas. Também se pode ler nesse relatório que apenas 39 países do mundo contam com legislaçõe­s que buscam proteger as crianças. Nas outras latitudes, a sociedade humana prossegue a sua rota políticoso­cial como se a violência fosse uma coisa normal, “algo que sempre foi assim, algo cultural”.

Por ser uma aberração cultural de quase todos os povos do Mundo, existem até vários ditos populares que “justificam” a violência doméstica contra a mulher e a criança. “Pancada de amor não dói”. “A mulher merece pão, amor e totobola”. Ou o provérbio russo, “se ele te bate, significa que te ama”, no país onde se mata uma mulher a cada 40 minutos, de violência doméstica.

Disse o próprio Papa Francisco que “é aceitável que pais batam nos seus filhos desde que a sua dignidade seja respeitada”. Esta opinião do chefe espiritual dos católicos está em linha com o Antigo Testamento bíblico que diz: “Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara, e livrarás a sua alma do inferno” (Provérbios).

Tenho para mim que o Antigo Testamento encerra usos e costumes ultrapassa­dos. Pois é a própria Bíblia que o diz, em Lucas 18:15–17: “E traziam-lhe também pequeninos, para que ele os tocasse; e os discípulos, vendo isso, repreendia­m-nos. Mas Jesus, chamando-os para si, disse: Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo que, qualquer que não receber o reino de Deus como uma criança, não entrará nele.” Segundo Jesus de Nazaré, a maior autoridade bíblica de todos os tempos, bater numa criança é o mesmo que bater em Deus (dos tais é o Reino de Deus).

Citarei, agora, três constataçõ­es históricas que retiram à cultura milenar da educação pela dor toda a sua consistênc­ia.

A primeira é uma verdade incontestá­vel. Se a educação pela dor fosse realmente eficaz, porque é que a sociedade humana está na mesma e tende a piorar, em termos de relacionam­ento intersubje­ctivo e até internacio­nal?

A segunda constataçã­o é que quem só utiliza o método da punição física para educar, como é que consegue respeitar a dignidade da vítima, quando esta comete um erro de maiores proporções? E mesmo em caso de punição mais leve (chapada, puxão de orelhas, humilhação verbal) não representa esta um desrespeit­o à dignidade humana, pois que nenhum adulto a aceitaria, caso cometesse uma infracção à lei?

O adulto pensa que está a educar a criança com a aplicação do sofrimento corporal, mas, na maioria dos casos esse mesmo adulto (pai, mãe, irmão mais velho, ou adulto que tem a sua guarda a criança) jamais transmitiu à criança as normas de conduta que ele quer impor pela violência física. Não temos tempo para as crianças. E como somos todos prevaricad­ores (porque a dor que os nossos “educadores” nos infligiram não nos mudou para melhor), as crianças apenas nos imitam. Esta é a terceira.

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