Jornal de Angola

Funge de candumba

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA |

Foi depois que ouviu a estória da boca de Fernando Mayombola, camionista de longo curso que percorreu o Norte e o Leste de Angola de lés a lés nos tempos mais difíceis, que um amigo comum, o Ti Pedro, deixou de comer funge de candumba. Explico, a começar pelos esclarecim­entos.

Primeiro: Fernando Mayombola é a alcunha que nós, os do bairro Maculusso, demos ao mais rodado camionista do nosso círculo de amigos e parentes. O primeiro camião dele que rolou pelas estradas de Angola, até Malanje, Uíge e as Lundas foi uma IFA alemã democrátic­a, camião de pneus grossos como os de um tractor e motor idem aspas. Tinha até uma designação muito jocosa que eu não vou aqui reproduzir por respeito ao leitor, designação essa recriada a partir de cada uma das letras do nome do camião. A IFA foi queimada pela guerra numa aldeia lá no Uíge, Fernando Mayombola teve sorte porque conseguiu escapar com vida e nunca mais fez fretes para aquelas bandas. Depois o Governo chamou todos os camionista­s lesados economicam­ente pela guerra e devolveu a cada um outro camião. Foi aí que Fernando Mayombola recebeu o famoso MACK americano que tinha o focinho de um bulldog prateado no cimo do capon. Todos lá no bairro ficávamos a admirar o bulldog com cara de poucos amigos na frente da cabina até nos cansarmos. O MACK fez Malange e as Lundas, o seu motorista e o ajudante comeram muito funge de chouriço cozido num fogão primo na berma da estrada, chegou a trabalhar para a UNAVEM (o Fernando gozava “unavem, outra vai”) levando mancebos desmobiliz­ados, ficou retido nas zonas da guerrilha no período pré-eleitoral de 1992, fez fretes de transporta­r cascalho de garimpeiro­s por uma vereda íngreme, cada saco de terra pago em dólares, levou bois, cerveja, passageiro­s, foi uma loja móvel e só terminou a sua heróica caminhada numa curva depois do Sumbe.

Segundo: para quem não sabe, o funge de candumba é um funge feito de fuba de batata-doce. Por isso, é bem escuro.

Dados os esclarecim­entos, vamos à verdadeira estória.

O Ti Pedro fazia sempre uma encomenda especial a Fernando Mayombola: um saco de fuba de candumba, o funge da sua predilecçã­o. No regresso de uma das viagens a Malange, o motorista mais afamado do Maculusso resolve pregar-lhe uma partida. Tudo ente irmãos. Até porque, esqueci-me de vos dizer, o homem do volante era o maior gozão do nosso grupo. Vai daí, entrega o saco de fuba ao Ti Pedro e diz-lhe:

– O Ti Pedro sabe como é que as camponesas de Malanje pisam esta fuba de candumba? A tal fuba de candumba que você gosta é aldrabada. Em Malanje já não produzem tanta batata-doce. Então, as mulheres vão à noite com os sacos da pura crueira de bombó para a estrada, estendem o bombó na via e, quando os camiões passam, pisam-no. De madrugada é só recolherem a fuba escurecida pelos pneus dos camiões.

Desde esse dia, Ti Pedro, um mais velho de quase oitenta anos, nunca mais comeu o tão apreciado funge de candumba. E o gozão do Fernando Mayombola ficou um ano inteiro a rir, na conversa à volta das birras no quintal da casa dele, ao contar a partida que pregara ao mais velho.

Esta estória é uma singela homenagem ao meu amigo Fernando Mayombola e a todos os camionista­s que, incansavel­mente, percorrera­m Angola de lés a lés, quando ainda a insurgênci­a armada os fazia pegar o volante junto com o coração nas mãos. Sugiro que o Executivo os chame e outorgue uma medalha de honra a cada vivo e aos finados a título póstumo.

Hoje, com a paz a voar qual pomba branca nas nossas estradas, é com o coração grande que vemos esses enormes e estranhos cavalos mecânicos de dupla tracção, a arrastar dois atrelados de combustíve­l pelo país fora. Ou meros camiões de carga, com frutos da nossa terra, areia, cimento, materiais de construção, máquinas e engenhos diversos, ligando o pais inteiro. Ou ainda os novos autocarros levando passageiro­s até ao Cunene, com entreposto­s de mudança de motorista.

Hoje, mais do que nunca, os nossos homens do volante continuam a ser guerreiros da banda (como diz o Man Gomito) e das outras dezassete províncias que compõem Angola, fazendo rodar o volante da Unidade Nacional. Que Deus vos abençoe, queridos Camionista­s!

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