Manual de economia bucólica
O poema dos pastores cuanhamas, Haisikoti, pertence ao género da poesia bucólica, sendo esta designação dada ao verso que canta as coisas do campo. Haisikoti, canção recolhida pelo Padre Carlos Estermann e contida na sua obra “Etnografia do Sudoeste de Angola”, canta a chuva, as rãs, as aves aquáticas, a terra, a tartaruga, os bois, o leite, o pirão, o ambiente dos espaços abertos lá do mato.
Diz o próprio Estermann, que “haisikoti é um carreiro batido, batido aqui pelo pisar de muito gado. A chuva evoca”, na voz cuanhama “intermináveis filas de bois luzidios que passam pelos tortuosos caminhos do mato.”
Nós devíamos divulgar mais os cantares antigos dos cuanhamas. Porque não são apenas poesia, contêm lições de economia muito válidas para os dias de hoje conturbados por causa da queda do preço do petróleo e outras malambas do nosso mundo interdependente.
Há dias, num programa de televisão, perguntaram a um dirigente de um partido da oposição qual era a prioridade económica do grupo dele. O homem, que ia muito bem embalado no criticismo ao status quo, ficou engasgado, fez reticências e disse quase nada. Não convenceu os telespectadores.
Tenho ouvido e lido na imprensa outras personalidades, com ênfase para os economistas, que colocam o acento na plataforma macroeconómica, na redução ou estabilização da inflação, como se a moeda (o kwanza ou o dólar) fosse o milongo para os nossos males.
Ora, eu tenho uma particular e inata intuição, talvez porque nasci e vivi candengue no mato, de que, em primeiro lugar, temos de matar a fome das pessoas. Portanto, se qualquer jornalista me colocar a tal questão da prioridade económica de Angola, nunca hesitaria em responder prontamente: segurança alimentar.
Um dos produtos básicos da nossa alimentação é o funge. Foi essa inata intuição e o sabor do funge na ponta da língua que me levaram a criar, em 1980, este poema que saiu no meu primeiro livro, Chuva Novembrina:
“ATÉ AO ANO 2.000
Os ministérios serão amaciados até ao ano 2.000. Se entranharão os ministros lá em baixo onde o verde é belo Até ao ano 2.000 muita mandioca fresca há-de haver nas praças.”
Profecia hibernada, porque já estamos em 2017 e o preço da mandioca está na zona da média procura comercial. A seguir à mandioca, vem o milho, o tomate, a cebola, o alho e a batata-doce, que são produtos de curta gestação, e cujo cultivo em grande escala pode acabar com a sua importação e projectar a auto-suficiência alimentar do nosso povo. O preço da mandioca cairia, assim como o preço dos outros produtos básicos da nossa alimentação de país tropical. Tenho também outra intuição inata de que se produzirmos bué, as trocas internas e o comércio dos produtos fazem as nossas mentes concentrarem-se na riqueza que criamos, melhorar a circulação e a conservação dos produtos do campo, melhorar as condições de vida dos camponeses e esquecer a dependência doentia em relação ao dólar. Poupar-se-iam divisas, sem termos de estar toda a hora ruminar o boi verbal da macroeconomia e da taxa de câmbio.
Mas isto – sei eu muito bem – é intuição inata de poeta e aos poetas ninguém dá cavaco, embora nos batam palmas. Mas, ainda assim, deixo-vos escrito este pequeníssimo manual de economia bucólica, porque o meu salário de jornalista justifica o branco sabor da mandioca que compro às zungueiras da rua.