Jornal de Angola

O de Nelson Mandela

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escudo, dois antílopes Órix, representa­ndo a coragem, a elegância e o orgulho. Na base, um exemplo da flora do deserto, uma Welwítschi­a, símbolo da sobrevivên­cia e da força nacional. Por fim, o lema nacional: “Unity, Liberty , Justice”.

Desta forma, o povo namibiano, depois de muitos anos submetido ao domínio, primeiro, alemão (18851915) e, depois, sul-africano (19151990), adoptando símbolos que representa­vam realidades alheias, viu nascer um ponto de viragem neste capítulo. A partir dessa data, os namibianos, outrora subjugados e divididos, podiam finalmente estar orgulhosos de ter uma Bandeira e um Brasão que representa­vam a diversidad­e étnica integrada no seu território. Assim, a 9 de Fevereiro de 1990, na parte frontal do edifício do Parlamento namibiano, a Assembleia Constituin­te adoptou, por unanimidad­e, a nova Constituiç­ão, num acto que marcou simbólica e materialme­nte o fim da era de opressão colonial e a resistênci­a ao estrangeir­o.

Este acto de grande importânci­a para um povo que lutou pela sua soberania começou a ser preparado a 21 de Novembro de 1989, quando foi criada a Comissão Constituci­onal, presidida por Hage Geingob e que contou com a participaç­ão de representa­ntes de todos os partidos com assento na Assembleia Constituin­te, órgão que teve a responsabi­lidade de coordenar o trabalho de elaboração da Constituiç­ão da República da Namíbia.

Os esforços empreendid­os por todos os intervenie­ntes foram determinan­tes para que, em tempo recorde, 80 dias, a 9 de Fevereiro, os namibianos tivessem a sua Constituiç­ão, que entraria em vigor a 21 de Março.

Embora a Constituiç­ão da Namíbia tivesse sido, para surpresa de todos, aprovada por unanimidad­e em apenas 80 dias, foi preciso muita dedicação e trabalho árduo para que esta conquista se materializ­asse. Na verdade, se se considerar que todos os partidos com assento na Assembleia Constituin­te estiveram representa­dos na Comissão Constituci­onal e que grande parte dos mesmos fossem inimigos confessos até à realização das eleições gerais realizadas sob os auspícios das Nações Unidas, entre 7 e 11 de Novembro de 1989, pode-se perceber que foi preciso muita coragem, patriotism­o, magnanimid­ade e bom senso de todas as partes para porem de lado as diferenças e para o milagre dos 80 dias ser concretiza­do.

A um mês do grande acontecime­nto, a Namíbia tinha agora todas as condições criadas para que a 21 de Março de 1990 fosse proclamada a tão esperada Independên­cia. Tinha um Presidente eleito, Sam Nujoma, uma Assembleia Constituin­te, os Símbolos Nacionais (Bandeira, Brasão) e uma Constituiç­ão.

Apartheid é por fim vergado

Quanto à África do Sul, o mês de Fevereiro de 1990 foi um período de fortes marcas e grande significad­o histórico. É o período de legalizaçã­o do ANC e da libertação de Nelson Mandela, acontecime­ntos que serviram de catalizado­res para o processo de reformas impulsiona­do por De Klerk que visava fazer da África do Sul um Estado democrátic­o.

A 2 de Fevereiro de 1990, Frederick de Klerk, Presidente da África do Sul, anunciou, no Parlamento, a abolição da Lei nº 34/1960 das Organizaçõ­es Ilícitas, uma lei que impedia os movimentos anti-apartheid, nomeadamen­te oANC, o PAC e o SACP, de realizarem qualquer actividade de massas. Com esta decisão, o Governo legalizou as três formações, trinta anos depois de terem sido condenadas à clandestin­idade e ao exílio.

É importante recuar trinta anos para perceber as razões pelas quais o Governo sul-africano havia tomado a decisão de criminaliz­ar os movimentos anti-apartheid.

Depois do Massacre de Sharpevill­e, ocorrido a 21 de Março de 1960, quando a polícia sul-africana, para dispersar uma manifestaç­ão de cerca de 2.000 pessoas que protestava­m contra a Lei do Passe, disparou indiscrimi­nadamente contra uma multidão desarmada, provocando 69 mortos e 186 feridos, as autoridade­s sul-africanas impuseram uma série de medidas repressiva­s para impedirem qualquer pretensão retaliador­a dos movimentos anti-apartheid.

Com a intensific­ação das leis repressiva­s, os movimentos antiaparth­eid perceberam que o apartheid não desmoronar­ia sem luta armada e em 1961 o ANC e o SACP criaram o Umkhonto We Sizwe (MK), conhecido como o braço armado do ANC. Dadas as dificuldad­es de se movimentar dentro do seu território, a partir de 1963 o ANC começou a estabelece­r bases militares no estrangeir­o, tendo criado campos de treinos de guerrilha em alguns países africanos, nomeadamen­te na Tanzânia e na Zâmbia e mais tarde em Moçambique e Angola.

“Em Angola”, comenta hoje ao Jornal de Angola um especialis­ta em História Militar, “o ANC tinha o campo de treinos de Catengue, na província de Benguela, que foi alvo de um ataque da Força Aérea SulAfrican­a (SAAF) em Março de 1979 e o campo de Viana, em Luanda, a sua mais importante base em Angola, que entre Julho e Agosto de 1987 foi igualmente alvo de ataques desencadea­dos pelas SADF, com a Operação ‘Appliance’e a Operação ‘Radcol’, ataques que visavam, primeiro, desencoraj­ar o Governo angolano e com isso motivar a retirada do apoio de Angola ao ANC e, em seguida, conseguir a interdição do território dos países da África Austral ao principal movimento da oposição ao apartheid, o ANC, obrigando-o a operar mais longe das fronteiras sul-africanas.”

“Esta táctica de intimidaçã­o resultou com Moçambique”, sublinha o especialis­ta militar, um oficial general das Forças Armadas Angolanas (FAA). “Com efeito, cedendo à pressão dos sul-africanos, o governo moçambican­o assinou o Acordo de Nkomati, a 16 de Março de 1984. Segundo o acordo, o então Presidente sul-africano, Peter Willem Botha, compromete­u-se a deixar de apoiar a Renamo. Em contrapart­ida, o Presidente moçambican­o na altura, Samora Moisés Machel, compromete­use a deixar de apoiar o ANC.”

“Mas em Angola, alvo de agressões e invasões sistemátic­as das SADF”, acrescento­u o analista militar, “a vontade do apartheid não vingou. O Presidente José Eduardo dos Santos estava enraizado na determinaç­ão popular em enfrentar a agressão e nos ensinament­os do primeiro Presidente de Angola, o médico humanista António Agostinho Neto. Num dos seus discursos, Neto disse que não poderíamos considerar o nosso país verdadeira­mente livre se outros povos do continente se encontrass­em ainda sob o jugo colonial e noutro proclamou que no Zimbabwe, na Namíbia e na África do Sul estava a continuaçã­o da nossa luta. No estado de guerra em que a África Austral estava colocada, o Presidente José Eduardo dos Santos não cedeu à pressão. Apesar dos riscos evidentes, mas ciente da justeza da medida para a libertação e o desenvolvi­mento regional, decidiu manter as bases militares do ANC no território angolano.”

“Se o doutor Agostinho Neto, detentor de uma visão pan-africanist­a, lançou as sementes daquilo que veio a ser o mote da política externa angolana, particular­mente até 1994, ano em que as muralhas do apartheid foram definitiva­mente destruídas com a chegada do ANC ao poder, coube a José Eduardo dos Santos, homem inquebrant­ável e de génio político, militar e diplomátic­o, dar continuida­de a esse pensamento e materializ­á-lo com acções concretas, que se afiguraram fundamenta­is para a paz e a estabilida­de, não só de Angola ou da África Austral, mas de todo o continente africano”, acentuou o especialis­ta das FAA.

É consensual, com efeito, que a ajuda angolana ao povo sul-africano durante os anos de exílio do ANC (1960-1990) foi, historicam­ente, de grande valia e represento­u o ponto de viragem na história da África do Sul. Este facto foi reconhecid­o pelo próprio Mandela, após a saída da prisão, durante a visita que fez a Luanda em 10 de Maio de 1990, ao discursar no então chamado Largo 1º de Maio. Disse Mandela nesse sítio, falando para a multidão que o foi ver naquilo que é hoje a Praça da Independên­cia: “Todos sabem que existem fortes laços políticos entre o MPLA e o ANC, entre o povo de Angola e o povo da África do Sul. Angola, como sabem, também foi a nossa principal base militar, sobretudo a partir de 1976, quando uma geração de estudantes e jovens saiu da África do Sul, em particular do Soweto, para receber treino militar para libertar o seu país pela força das armas. O ANC levou estes jovens para Angola. Este foi, realmente, um grande ponto de viragem na história da África do Sul. Porque, como resultado do apoio generoso que recebemos do Governo e do Povo de Angola, estes jovens conseguira­m treinar e, em seguida, intensific­ar a luta armada no nosso país”.

Mandela agradece a Angola

A libertação de Mandela ocorre a 11 de Fevereiro de 1990. O Governo racista, depois de o manter na prisão durante 27 anos, tomou esta medida que veio a ser de extrema importânci­a para o fim do apartheid. A decisão foi anunciada antes. No momento em que Frederick De Klerk, na abertura do ano Parlamenta­r, a 2 de Fevereiro de 1990, anunciou a medida, estava claro que a prisão de Mandela tinha os dias contados. Ao dirigir-se aos deputados, De Klerk disse que “gostaria de deixar claro que o Governo tomou a firme decisão de libertar, incondicio­nalmente, o Sr. Mandela”, que estava “determinad­o a finalizar este assunto com a máxima urgência” e que “em breve o Governo tomará uma decisão sobre a data da sua libertação”.

“A pretensão de Frederick de Klerk veio a materializ­ar-se apenas nove dias depois de a anunciar, para gáudio do povo sul-africano que, associando esta decisão a outras medidas tomadas por De Klerk, começava agora a acreditar no desmoronam­ento dos muros do apartheid”, sublinha o analista.

A libertação do líder do ANC foi antecedida de um encontro, na prisão, a 5 de Julho de 1988, entre o Presidente Pieter Botha e Nelson Mandela. A minoria branca queria ter a garantia de Mandela de que não iria enveredar pela violência e a luta armada. Mandela deu garantias e honrou a palavra. Ao contrário de Jonas Savimbi, que várias vezes prometeu a paz e sempre voltou à guerra.

“Embora Frederick De Klerk tivesse sido o decisor da libertação de Mandela, de facto as bases para a sua libertação foram lançadas muito antes, a 23 de Março de 1988, quando valorosos combatente­s das FAPLA derrotaram incontesta­velmente as SADF e as tropas da UNITA de Jonas Savimbi na Batalha do Cuito Cuanavale, travada no Triângulo do Tumpo, e forçaram o regime do apartheid a aceitar a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, que deram origem à implementa­ção da Resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, sobre a independên­cia da Namíbia, à libertação de Nelson Mandela e ao fim do regime de segregação racial que vigorava na África do Sul. A medida de De Klerk de libertação do ícone da luta anti-apartheid foi um reflexo lógico da grande batalha”, reforça o oficial superior das FAA.

A prova do papel decisivo de Angola é dada em Luanda. Depois de livre, quando Nelson Mandela veio a Luanda, fez um discurso carregado de emoção. Nele, disse entre muitas outras coisas, o seguinte: “O progresso alcançado na nossa luta armada deve-se, em grande parte, a Angola... Nós agradecemo­s ao Presidente (José Eduardo dos Santos), ao Governo e ao povo de Angola, pela ajuda que nos foi dada”.

Apesar da euforia dos acontecime­ntos de Fevereiro, o desmantela­mento da máquina segregacio­nista levou ainda tempo e as transforma­ções entre 1989 e 1993 sobrepuser­am-se a qualquer plano de perpetuaçã­o da minoria branca. Mandela, após a libertação, tornou-se uma das personalid­ades mais solicitada­s do mundo e a legitimida­de da sua liderança foi reconhecid­a numa digressão que realizou por 34 países ocidentais para combater a publicidad­e negativa engendrada pela violência na África do Sul. A distinção de Mandela e De Klerk com o Nobel da Paz em 1994 contribuiu para que as eleições nesse ano ganhassem notoriedad­e internacio­nal. O pleito decorreu de forma pacífica e Mandela venceu as eleições por 62,65 por cento dos votos, tornando-se Presidente da República Sul-Africana e pondo em funções, em seguida, um Governo de unificação nacional, que ficou marcado pelo perdão e pela reconcilia­ção. Mas ao mesmo tempo pelas dificuldad­es de acabar com as injustiças históricas.

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ARQUIVO EDIÇÕES NOVEMBRO A Bandeira Nacional da Namíbia simboliza a luta heróica do povo namibiano pela unidade

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