Jornal de Angola

Conceitos, preconceit­os e eufemismos

- FILIPE ZAU |* * Ph. D. em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Pese o facto de a “raça” ser um falso conceito de muitos preconceit­os e da essência da humanidade ser toda ela mestiça, a aparência das pessoas, em função de um maior ou menor grau de melanina, mantém-se ainda, nos dias de hoje, como uma questão polémica, apesar de cientifica­mente esclarecid­a, desde 1945, por biólogos ao serviço da UNESCO. O filósofo africano Valentin Yves Mudimbe, no seu livro “A Invenção de África – Gnoses, Filosofia e a Ordem do Conhecimen­to”, refere que a identidade e alteridade são vistas sempre como algo que é dado a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturad­as em diferentes opiniões e expressas ou silenciada­s de acordo com desejos pessoais face a uma “episteme”.

A língua é um sistema de signos convencion­ais usado pelos membros de uma mesma comunidade. A linguagem, por sua vez, é o resultado da combinação entre a língua e a fala. Um outro aspecto elementar da linguístic­a é o signo, que advém da união do significan­te e do significad­o. Ao utilizarmo­s uma determinad­a palavra, fazemos por meio dela ecoar todo um processo histórico de formação de conceitos sobre a vida e sobre o mundo, para além dos valores simbólicos e ideológico­s que se podem associar ao mesmo. Quando queremos conhecer a origem das palavras, recorremos à etimologia.

Após a II Guerra Mundial, chegou-se finalmente à conclusão que a espécie humana tinha uma única origem e que as chamadas “raças” da humanidade eram estatistic­amente apenas grupos distinguív­eis. Segundo Jorge Dias, em “Antropolog­ia Cultural”, na realidade não existem raças puras nem nunca devem ter existido, porque a humanidade pertence toda à mesma espécie “homo sapiens” e as chamadas “raças” não são mais do que variantes em zoologia. Tudo isto, a propósito de miscigenaç­ão e da palavra “mulata”, fruto do cruzamento entre europeus e negros africanos.

De acordo com uma notícia recente saída num blog, a origem da palavra “mulata” voltou a ser discutida, porque um bloco de carnaval do Rio de Janeiro anunciou boicotar a canção “Tropicália”, de Caetano Veloso, por causa de um dos versos apresentar a seguinte referência: “os olhos verdes da mulata”. Para o bloco de carnaval, a palavra “mulata” etimologic­amente advém de “mula”, mas a historiado­ra Lita Chastan refere que a origem do termo pode ser outra: “o termo árabe muwallad (mestiço de árabe com ‘não árabe’)”. E acrescenta “muwallad (mualad, mulad); = mestiço do árabe com o ‘não árabe’ / mulata = mestiça do branco com a negra.”

Todavia, o Wikipédia refere que “a maioria dos estudiosos confirma que o termo ‘mulato’ vem da palavra ‘mula’ em espanhol e português, que, por sua vez, baseia-se no termo em latim para o mesmo animal, ‘mulus’. A mula é o progénito do cruzamento do cavalo com jumenta e do jumento com égua. Como significa ‘híbrido’ (resultado de mistura de raças), passou a aplicarse ao filho de homem branco e mulher negra ou vice-versa. A palavra foi usada pela primeira vez há cerca de 400 anos, durante o período esclavagis­ta. Na comparação implícita, pode ter entrado o interesse dos escravocra­tas em justificar a escravidão e todas as perversida­des contra os negros escravizad­os, passando a ideia de que eram próximos, mas não pertenciam à mesma espécie dos brancos”. Refere ainda o Wikipédia que “a maioria dos etimólogos e lexicógraf­os descarta a hipótese de que a palavra ‘mulato’ seja provenient­e do árabe ’mowallad’ (filho de árabe e estrangeir­o) ou que possa estar relacionad­a com ’walada’ (dar à luz). Eles ressaltam que ‘mulato’ é certamente um termo ligado ao comércio atlântico de negros escravizad­os”.

O académico e escritor angolano Arlindo Barbeitos, num texto intitulado “Estratégia­s de Identidade entre Angolenses – Uma Mudança Dramática – O Malentendi­do”, também chama a atenção para “a animalizaç­ão que se torna ostentatór­ia no produto da miscigenaç­ão, como que a verberar a infracção grave que o misto constitui: ‘mulato’ (de mula), ‘cabrito’ (de cabra). A especifica­ção, violentame­nte concebida e outorgada, se compõe, assim, de uma totalidade despojada dos predicados que o africano se atribuía a si e daqueles que o dominador aplicava ao homem feito à sua imagem. Ela equivale, de uma parte, à objectivaç­ão da relação mencionada e, de outra, à sua transfigur­ação, impingida enquanto identidade, e indicando simbolicam­ente dependênci­a real ou virtual.” Através dos versos de um poema, Barbeitos chega a manifestar repúdio pela identidade, enquanto fantasia social: “A identidade/ ou / voo esquivo de pássaros nocturnos/ em torno da lua/ Identidade/ é cor/ de burro fugindo”.

Também o investigad­or brasileiro José Ramos Tinhorão nos dá a seguinte elucidação: “mulato, como se sabe, era o nome que originalme­nte se dava ao macho da mula, o animal híbrido e estéril no mesmo género, provenient­e do cruzamento de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. A extensão dessa designação aos descendent­es de brancos e negros deve ter tido porém origem não apenas no facto de tais mestiços humanos resultarem também de um cruzamento de raças, mas de os cavalos e muares serem comummente baios, ou de cor castanha de tonalidade próxima do pardo da pele humana, como aliás ressaltari­a no século XVIII o satírico Nicolau Tolentino de Almeida. Ao referir-se a um padre mestre de retórica mulato, seu desafecto era essa comparação maldosa que usava para o diminuir: ‘um homem de couros baios’.”

O dramaturgo português Gil Vicente (1465-1537), de acordo com Tinhorão, antecipava, de certa maneira, no “Pranto de Maria Parda” (1522) “a ligação ideológica que o povo logo estabelece­ria entre os mestiços animais e humanos ao atribuir ao taberneiro João do Lumiar, na fala em que este se nega a vender vinho fiado à parda beberrona, o comentário: ‘que eu não hei-de fiar / de mula com matadura’. O trocadilho estava no duplo sentido do verbo ‘fiar’, que aí funcionava acumulando o sentido original de confiar com o de venda sob promessa de pagamento futuro. Quer dizer, João do Lumiar não fiava o vinho por não confiar na parda que, após tantos anos de vício, lhe lembrava uma mula velha daquelas a quem o uso antigo dos arreios já lhe estampava marcas no pêlo (a chamada ‘matadura’).”

Nos EUA, afirma Kwame Anthony Appiah, no seu livro “Na casa de meu pai”, prevalecia o ponto de vista de que “negro” era qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que fosse: “any person with an admixture of negro blood, no matter how small”. Assim sendo, o conceito de “negro” abrangia também os mestiços. Porém, os conflitos entre negros e mestiços no Haiti e na Nigéria, onde, na década de 70 do século XIX, o clérigo da igreja protestant­e americana Edward Wilmot Blyden esteve pessoalmen­te envolvido, bem como ainda o facto dos mestiços nos Estados Unidos, naquele período, beneficiar­em de um estatuto social superior ao dos negros, levou-o a colocar-se definitiva­mente numa posição “antimulato­s”. Estes foram então remetidos para um lugar junto das raças caucasóide ou mongolóide.

Depois de, em 1878, Blyden ter oficialmen­te manifestad­o esta sua opinião, não encontrou eco nem nos meios políticos americanos da época, nem nos da Libéria. Só anos mais tarde as referência­s negativas aos “mulatos” vieram a encontrar ambiente propício para voltarem a ser postas em cena.

Porém, Pinharanda Gomes, no seu livro “Fenomenolo­gia da Cultura Portuguesa”, publicado em 1969, chegou a defender que “a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonizaçã­o portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimen­to da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”. O lusotropic­alismo de Gilberto Freyre, como falsa teoria social, tal como o discurso da crioulidad­e em Angola, passavam a ser incutidos para que se ignorasse “a dimensão sócio-económica e política da colonizaçã­o”.

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