Jornal de Angola

Os passarinho­s e a arquitectu­ra urbana

- LUCIANO ROCHA |

O luandense perdeu o convívio com os passarinho­s que, não há muitas décadas, eram parte do quotidiano, saudavam-no de manhã e à tardinha, guardavam-lhe segredos, anunciavam-lhe o tempo.

A Luanda de então, de cidade pouco mais tinha do que o nome. As tecnologia­s de comunicaçã­o ficavam-se praticamen­te pelo sistema de morse, com letras, algarismos e sinais de pontuação provenient­es de toques num aparelho, igualmente receptor. Aos ouvidos da maioria dos leigos chegavam como sinfonia desafinada de assobios e apitos. Aos de outros, principalm­ente crianças, como algo de mágico. Os raríssimos telefones, a maioria instalados em serviços públicos, funcionava­m à manivela, com os locais para falar e ouvir separados um do outro, pelo que a sua utilização exigia as duas mãos.

A Luanda daquele tempo tinha muitíssimo menos luz do que a de hoje. Os poucos candeeiros de iluminação pública funcionava­m a querosene e eram acendidos - apenas na pequena cidade asfaltada e empedrada - ao início da noite por funcionári­os camarários.

Nas casas de habitação, a escuridão era rompida por candeeiros a petróleo, lamparinas de lata, muitas vezes adaptadas de recipiente­s - de leite condensado, de conservas, cujo combustíve­l era azeite doce ou de dendém. A água para consumo doméstico provinha de cacimbas, dos pouquíssim­os chafarizes e de merceeiros, que, além de a misturar no vinho, a vendiam.

A Luanda daquele tempo era bem pior do que a de hoje, mas tinha mais árvores, que refrescava­m a cidade e a coloriam sem diferenças - a do asfalto e a do areal vermelho - e eram palco dos passarinho­s de várias matizes, que a enchiam de cânticos de alegria, mas também de tristeza. Eram januários, de bicos e penas vermelhas enfeitadas com pintas brancas, pardais, que começam a reaparecer. Acima de tudo, caxexes vestidos de azul-celeste e cinzento, bicos-de-lacre, orgulhosos no castanho amarelado da plumagem, ventre às riscas brancas, cauda pintada de vermelho escuro e bico da cor que lhe dá o nome, bem como o bigodes, assim chamado por ter uma lista negra que lhe vai da comissura do bico em curvatura para trás. O peito e ventre são amarelos escuros, as asas e a cauda sensivelme­nte da mesma cor, mas com listas pretas. Havia um, cujo nome me não lembro, que anunciava azar, outro, uma boa-nova e um terceiro que pedia a chegada do Cacimbo por não haver chuva para castigar os caminhos e casas dos pobres.

Nunca consegui, e bem tentei, ouvir mensagens, avisos, pedidos nos cantares dos passarinho­s da nossa Luanda, como nos falava Velho Bano, que tinha sido marinheiro de muitos portos. Em cada um deles, um amor, vários bares e algumas brigas. Naqueles anos, eu apenas escutava melodias que nunca mais esqueço, que me pareciam todas belas, suaves. Mas nunca duvidei no que ele nos contava, a mim e a todos os meninos. Na hora de depois do jantar, debaixo de uma goiabeira do seu quintal ou na porta da rua da sua casa. Sempre com boné branco e azul com âncora dourada bordada em cima da pala.

Luanda cresceu, moderniza-se todos os dias. Hoje sim, é cidade, mais moderna e bonita do que a da minha infância. Apenas lhe faltam árvores, que há-de voltar a ter. Com elas, vão reaparecer todos os passarinho­s de então e com eles os seus cantares. Pode ser que nesse dia perceba finalmente o que nos dizem e passe aos meninos de agora as estórias que Velho Bano nos contou naqueles anos da cidade pequena.

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