Jornal de Angola

Cuidar das palavras

- MANUEL RUI |

Nas CORRENTES DE ESCRITA, o maior evento de literatura­s escritas em língua portuguesa e espanhola, coube-me participar numa mesa com a epígrafe TEMOS DE TOMAR CUIDADO COM AS PALAVRAS. Como não gostei do título que me sugeria o medo, a repressão contra delitos de opinião, e havia vivido isso no tempo de Salazar quando fui redactor da revista “Vértice”, virei a matéria para o mote “EU QUE DAS PALAVRAS MUITO CUIDO”.

Depois, aquando do lançamento do meu último livro O KAPUTO CAMIONISTA & EUSÉBIO, apresentad­o em Lisboa pelo meu grande amigo maestro Vitorino de Almeida, com Paulo de Carvalho cantando de borla “OS MENINOS DO HUAMBO”, antes da minha fala de texto escrito à mão numa bola de futebol que eu ia rolando, o anfiteatro a transborda­r, bué de autógrafos, amigos de infância, colegas da universida­de, eu sempre a prender a lágrima, fiquei nessa meditação de que, embora não seja cristão, no princípio foi mesmo o verbo. Hoje sábado dia 4, fui à FNAC, um grande espaço comercial e encontrei na prateleira DESTAQUES o Kaputo que não deixa de ser uma homenagem colectiva à poética do futebol de Eusébio, o que se deduz desde a dedicatóri­a, prefácio aos posfácios onde aparece um testemunho recheado de afecto escrito pela minha sobrinha Carla Ferreira, filha de Eusébio.

Eusébio era filho de mãe moçambican­a e pai angolano. A meu pedido, ficaram as três bandeiras, a nossa, a moçambican­a e a portuguesa. Na literatura não há conflitos. E, no lançamento nas CORRENTES, alguém me veio pedir para dizer que “Samora Machel é que disse a verdade: Quem deu a conhecer Portugal ao mundo foi

um preto”.Andam sempre no ar coisas assim e um amigo anarquista disse-me “Manel sabes que os reaccionár­ios da extremadir­eita perguntam qual a razão disto estar assim? Porque a Ministra da Justiça é Mantorras, o Primeiro-Ministro é caril e só há um juiz pra todos os processos e que o cujo pediu mil paus emprestado­s a um procurador da massa com que o dito procurador se havia corrompido com...” Enfim. Voltemos ao verbo, à palavra.

É bom honrarmos Angola com a nossa palavra. Com a nossa palavra escrita cuidando de meu cuidado de ser eu o primeiro a gostar delas como se fosse um menino do Huambo a ouvir a cantiga na certeza de que não passariam muitos anos e num auditório, num lançamento de um livro, em Lisboa, o público entoaria o refrão como se fosse ombela,o sabor da minha chuva de pontos cardiais, tectos de capim, fogo de cheiro da maçaroca a assar de tanta maravilha que já pensei no fim da vida ser incinerado em maçarocas com folhas a arder de alegria.

É bom cuidar da palavra. Tantas vezes as pessoas não dizem as palavras que deviam dizer. Quantas vezes, desde que a humanidade descobriu a escrita, as pessoas, umas mil montanhas das pessoas, foram mortas por terem dito ou por terem escrito sim ou não.

E, quantas vezes, verificamo­s que as pessoas até podem ter razão pelo direito de expressão, estamos do lado desse direito e, infelizmen­te, essas pessoas nem conseguem dizer o que pensam e nem com ruídos simulando música conseguem fazer da palavra um motivo porque não cuidam da palavra.

As guerras que atravessam o mundo, o drama dos refugiados, os países que perseguem as margens de que se alimentam muitos rios do poder, as margens que não dizem como deve ser a mudança e só se manifestam pela manifestaç­ão para o poder mostrar um “inimigo”, tudo isso é o mau princípio de não se cuidar das palavras.

O amor é uma palavra. A pátria é uma palavra. A liberdade é uma palavra. Os livros sagrados de todas as religiões inscrevem essas palavras.

Só que essas palavras principais da vida, na realidade hoje, pior do que ontem, mudaram sua prática para ódio, intolerânc­ia, belicismo e vivas à morte do outro.

Felizmente, a nossa literatura, aquela que merece reconhecim­ento internacio­nal, trata do amor, da liberdade e de outras palavras que poderiam ser verbos para conjugação do passado, e pretérito futuro, pelo menos.

Agora, na nossa terra, é preciso cuidarmos da palavra para podermos falar uns com os outros sem constrangi­mentos.

É preciso cuidarmos da palavra para a escrita nos jornais, cuidando da verdade sem preço e afastando-se da mentira e do dinheiro que a possa pagar.

É preciso falar, conversar em liberdade em nossa casa e não fazendo de Lisboa um casino da palavra de Angola.

É bom cuidar da palavra. Defendendo os honrados e denunciand­o os corruptos que sugam o sangue do povo.

É bom cuidar da palavra não fazendo profecias de costas para o arco-íris.

É bom cuidar da palavra dos ancestrais porque sem eles não teríamos resgatado a terra da Pátria Unida.

Façamos da palavra angolana, a unidade da nossa terra com a diversidad­e de pensamento­s que mais a enriquece.

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