Crónica de Luis Alberto Ferreira
O perfil dinheirento do governo de Donald Trump seria fonte de cogitações para os sociólogos norte-americanos mais importantes de vários séculos. A partir de 1906 e até, mais ou menos, 1965, não só alguns sociólogos mas também alguns economistas dos Estados Unidos foram verticais e desassombrados na análise da evolução industrial-capitalista do país.
O primeiro grande momento desse esforço de reflexão surge, em 1906, com um curso (“Tratamento Social do Delito”) do professor Charles Henderson, por iniciativa do Instituto de Sociologia de Chicago. Os seus fundamentos críticos originavam o aprofundar das teses de outro sociólogo norteamericano, Thorstein Veblen, dadas a conhecer em 1904. Veblen, já conhecido por ensaios como a “Teoria da Classe Ociosa”e “O Delito de Colarinhos Brancos”, manifestou-se então (1904) sobre “o espírito de um capitalismo industrial cada vez mais movido pelos avanços da tecnologia e da importância do crédito”.
Como ele, Thorstein Veblen, defendia com pragmatismo a distinção clara entre “questão social” e “problemas sociais”, depressa tirou dessas novas expressões do capitalismo industrial o registo conclusivo da crescente “petrificação social” dos Estados Unidos. Terra úbere para o paulatino cristalizar de uma “sociedade como guarnição”, ideia que outro sociólogo norte-americano, Vernon Dibble, explana com profundidade em mais um admirável ensaio – “A Sociedade como Guarnição – o Estado Poderoso e o Cidadão”. Um quase portátil meio de transporte para chegarmos ao Estado norte-americano do Kansas e conhecermos a alcáçova militar que dá pelo nome de Fort Leavenworth, pérola entre pérolas das preciosidades organizacionais do Pentágono.
Leavenworth era, até dias muito recentes, uma imponente fortaleza– representativa, segundo o jornalista Robert Kaplan, norteamericano, de um “chamamento ao sangue e à terra”. Algo simbólico da “velha mística” – de inspiração militaristatodo-poderosa – que Donald Trump parece recolocar sobre a mesa do sonho supremacial: “Os Estados Unidos vão voltar a ser grandes, tão grandes, tão grandes!” que, poderia ele rematar, “Fort Leavenworth abrirá asas e, de Teerão a Pyongyang, em 2021 não restará pedra sobre pedra!”. Pois, a “velha mística”.
No Fort Leavenworth abundam os símbolos recordatórios de guerras de expulsão e genocídio dos índios. Por exemplo, os da histórica batalha perdida, não se sabe como ou porquê, pelo célebre general Custer.
O movimento de rotação raciocinante do simbólico para a vida e o mundoreais mostra que, entretanto, os problemas estruturais são transmissivos entre decénios e eternizam-se nos Estados Unidos como na Europa– não constituindo, pois, um exclusivo da África, da Ásia ou dos países afro-ameríndios. As crises são recorrentes e as respectivas soluções adiadas ou paliadas entre gerações. A campanha para as últimas presidenciais norte-americanas reflectiu esse fenómeno endémico.
Como sentenciavam sociólogos como Max Weber e seus “discípulos”, ou como o ainda vivo Noam Chomsky, à “questão social”, um abstracto, sobrepõe-se hoje a carne rubra dos “problemas sociais”, não condescendentes com a errância das abstracções. Até hoje os Estados Unidos não responderam de todo a problemas cruciais que já existiam em anos como os de 1950 ou 1970.
Evidência antagonizada com a singularidade de um governo actual que acolhe nada menos de 15 milionários e que, com o presidente Trump à cabeça, representa só a cifra de quatro mil e quinhentos mil milhões de dólares. Fort Leavenworth dir-se-ia uma metáfora militarista desta magnificência espaventosa. Ideia ajustável à forma, relembro, como o estudioso Vernon Dibble interpretava, em 1960-1970, os Estados Unidos: “A Sociedade como Guarnição: o Estado Poderoso e o Cidadão”.
Ao novo secretário da Defesa norte-americano, general James Mattis, escolhido pelo presidente Trump, nada interessarão quaisquer pesquisas desse cariz, o sociológico. Considerado por Trump “um verdadeiro general de generais”, James Mattis será muito mais sensível ao bandeirismo de “sangue e terra” de Fort Leavenworth. Entre 2010 e 2013, o general Mattis esteve à frente do Comando Central dos Estados Unidos (CENTCOM).O cargo permitiu-lhe erguer a voz e condenar a política do presidente Obama para o Médio Oriente. Argumentou Mattis que o acordo nuclear com o Irão constituía “uma ameaça para a estabilidade regional”.
Antes, em 2003, o secretário da Defesa indicado por Trump havia participado na invasão do Iraque, foi comandante da Primeira Divisão de Marines. Aos cidadãos norte-americanos a favor ou “em guerra” com o actual Presidente tão pouco interessará conhecer os seus próprios subsolos originários e formativos – de tal modo vivem e interiorizam o imediato e a ditadura da comida e dos objectos e prazeres recicláveis.
Os problemas estruturais perduram. Esquecidas ou menosprezadas que foram as lições de 1966, a “América” de Trump vê a inovação sem freio como projecto solucionista cuja contundência seduz a própria Europa, desenhada para ser uma “Europa a duas velocidades”. E se não, vejamos o significado deste curto e bem recente desabafo de François Hollande: “A unidade não significa uniformidade”. Isto é, a Europa terá de ser sempre concêntrica para três ou quatro países e “globalizada” para a grande maioria restante, a da vulnerabilidade e da exposição incriteriosa ao assédio migratório e à especulação financeirista do Banco Central Europeu. Dois modelos, pois, de sociedade-guarnição: a dos Estados Unidos ea da Europa de vários círculos concêntricos. Mas o paradigma é de facto estado-unidense: o que evoca 1966. Sim, 1966. Quando em Janeiro se discutia na Casa Branca o OGE e o Presidente e assessores buscavam a forma de reduzir os gastos não-militares– de modo a oferecer todas as garantias ao orçamento militar para a guerra do Vietname ...“sem prejudicar os níveis esperados” para o equilíbrio da gestão global da nação.
Tema para a crónica que se seguirá a esta.