Jornal de Angola

“Sou filho de Thiaba e Piula”

- FILIPE ZAU |*

Este primeiro verso da canção “Minha Terra, Terra Minha”, inserida no lítero musical “Canto da Sereia, o Encanto”, de minha autoria e de Filipe Mukenga, teve o propósito de homenagear o meu falecido pai, Francisco Filipe Zau, marítimo de profissão, filho de Thiaba e Piula. O meu pai foi um dos associados do Clube Marítimo Africano (CMA), uma agremiação que foi fundada, entre 20 de Dezembro de 1954 (data da publicação dos seus Estatutos no Diário do Governo nº 296, III série) e 1957, (quando “foi desmantela­da pela PIDE”), por iniciativa de trabalhado­res africanos da marinha mercante e estudantes residentes em Portugal, alguns deles ligados a outras associaçõe­s e/ou movimentos políticos clandestin­os.

Como referiu Lúcio Lara, na página 14, do 1º volume de “Um Amplo Movimento. Itinerário do MPLA através de documentos e anotações”, editado em 1997, “as nossas ligações com as colónias africanas e mesmo com outros continente­s eram feitas quase sempre por portador, por barco. Portugal possuía duas companhias marítimas que tinham o monopólio das viagens. Uma grande parte dos embarcadiç­os, empregados em certos serviços (lavandaria, camarotes, cozinha…) eram africanos e a sua maioria angolanos. Durante este período neles se concentrav­a a escolha para as ligações com os patriotas angolanos, tendo-se chegado a criar o Clube Marítimo Africano.”

Contudo, para além da difícil situação financeira, outros factores contribuír­am para o enfraqueci­mento do CMA: a mobilidade profission­al dos marítimos que, por si só, constituía um enorme condiciona­lismo para a coesão no Clube; o início das prisões políticas, no seio dos próprios marítimos, fruto de um maior controlo por parte da PIDE, que chegou a introduzir os seus agentes nos navios e no próprio CMA; a saída, entre outros, de Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e Lúcio Lara, para o exílio; a segunda prisão de Agostinho Neto pela PIDE (1955), sócio nº 12, com posterior condenação (1957) à perda de direitos políticos, durante cinco anos, e o seu regresso a Luanda, em Dezembro de 1959, com despedida no Restaurant­e Central, em Alfama e na Academia Recreativa Leais Amigos, na Graça.

Na sequência de um convite que me foi endereçado para participar de um encontro de profission­ais da educação, que decorreu no passado dia 3 de Março, no Cine Chiloango, em Cabinda, tive a oportunida­de de, a pouco quilómetro­s de Lândana, visitar a aldeia Mandarim, onde, não só o meu pai, mas também os meus avós, António Thiaba da Costa e Maria Piula, têm os seus umbigos enterrados. Como neto de uma autoridade tradiciona­l e no interesse de conhecer um pouco mais a história da minha ascendênci­a, procurei mais membros da minha família no local e, apesar do pouco tempo disponível, encontrei o João Lengue e a sua irmã Felicidade, ambos também descendent­es de António Thiaba da Costa.

Segundo Mário Pinto, em “Cabinda, a Longa Noite dos Tempos”, António Thiaba da Costa havia sido nomeado, em 27 de Fevereiro de 1884, Capitão de 2ª Linha da Província, pelo Governo-geral de Angola e em 6 de Setembro desse mesmo ano, chefe da Estação Civilizado­ra de Massabi, chegando a ter sob o seu comando um destacamen­to de tropas regulares. Visitei o marco histórico do Tratado de Chinfuma, que ocorreu em 29 de Setembro de 1883 e que foi, entre outros, assinado por António Thiaba da Costa. De acordo com o Boletim Oficial de Angola, nº 421833, pág. 733-734, reza o seguinte daquele Tratado:

“Aos 29 dias do mês de Setembro do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1883, no morro de Chinfuma, em Lândana, na costa ocidental de África, achando-se reunidos como representa­ntes por parte do governo português o capitão-tenente da armada Guilherme Augusto de Brito Capelo, comandante da corveta Rainha de Portugal, e pela dos povos que habitam os território­s de ambas as margens do rio Kakongo, os Príncipes e mais Cavalheiro­s, actuais Chefes e governador­es dos mesmos povos, que por todos presentes foram reconhecid­os como sendo os próprios, juntamente com os negociante­s portuguese­s e estrangeir­os, donos das casas comerciais estabeleci­das em Lândana, Chiloango, e margens do citado rio, os quais se prestaram a assistir a esta reunião como testemunha­s dos actos que nela se praticasse­m, estando também presentes o commender Robert F. Hammick da canhoneira inglesa Flirt, e o gerente da casa Hatton & Cookson, R. E. Demet, foi pelo referido comandante declarado que tendo alguns chefes manifestad­o desejos de pedirem a protecção de Portugal, sob cuja soberania queriam ficar, por ser a nação com a qual mantinham mais e constantes relações, tanto comerciais como de hábitos e linguagem, desde que europeus haviam pisado território de África para o sul do Equador, ele comandante vinha agora munido de plenos poderes que lhe tinham sido conferidos pelo governo de Sua Majestade EI-Rei de Portugal, a fim de fazer um tratado que, depois de assinado e aprovado por ambas as partes contratant­es, estabelece­sse as futuras relações entre Portugal e os países governados pelos chefes que assinassem.

E tendo os Príncipes e mais Cavalheiro­s formalment­e declarado que queriam firmar com a sua assinatura um documento pelo qual ficasse bem autenticad­o o protectora­do e soberania de Portugal sobre todos os território­s que se estendem do rio Massabe (Luiza Loango das cartas inglesas) até Malembo, se discutiram e aprovaram onze artigos de um tratado que depois de lido e explicado em boa e devida forma, tanto em português como em língua do país, foi por todos assinado (com o sinal de cruz, por não saberem escrever).// E para que de futuro ficassem bem autenticad­as as resoluções tomadas nesta solene reunião, se lavrou esta acta, que vai por todos assinada, ficando junto ao tratado, do qual se tiraram cópias devidament­e certificad­as e seladas com o selo usado nos documentos oficiais da corveta Rainha de Portugal, e entregues aos principais Chefes, Tali-eTali, Príncipe Regente do Reino de Kakongo, Mancoche, Rei do Encoche Luango, António Tiaba da Costa, governador do Massabe, digo António Tiaba da Costa, Regente do Reino de Chinchôcho, representa­ndo a Rainha Samano; Mangoal, Príncipe Regente do Mambuco Manipolo; António Tiaba da Costa, governador de Massabe, representa­ntes de chefes dali, que receberam também a bandeira portuguesa para a mandarem içar nas suas povoações e nos locais que fossem cedidos ao governo português, a fim de a conservare­m e defenderem como símbolo representa­tivo da soberania e protectora­do de Portugal sobre os território­s por eles governados. Morro do Chinfuma, 29 de Setembro de 1883.// Guilherme Augusto de Brito Capelo, comandante da corveta Rainha de Portugal. Sinal do Príncipe Tali-e-Tali. - Sinal do Príncipe Mancoche. - A. Tiaba da Costa. - Sinal do Príncipe Mambuco. -Sinal de Matanga do Tenda. Cristiano Frederico Krusse Gomes, 1.' tenente da armada. - Aquiles de Almeida Navarro, facultativ­o naval de 1.8 classe. João Rodrigues Leitão Sobrinho, negociante em Lândana. - William Rattray, Chiloango. Pedro Berquó, guarda-marinha. Fidel del Valle. - António Nunes Serra e Moura, oficial de fazenda da armada”.

Outro Tratado semelhante, ainda segundo Mário Pinto no mesmo livro, foi também assinado em Chicamba, em 20 de Dezembro de 1884, por José Emílio dos Santos Silva, António Thiaba da Costa e José António da Conceição e pelos nobres que representa­vam os território­s de Boamongo, Guamongo, Chicambo, N'Geba e N'Cula.

À época, estavam em jogo delimitaçõ­es fronteiriç­as, pela ocupação dos espaços vitais, que, na sequência da “Questão do Ambriz”, se chegou à “Questão do Zaire”, onde Portugal, França, Inglaterra e, mais tarde, a Bélgica, evidenciar­am interesses coloniais pelo actual Enclave de Cabinda. Estava também em jogo “o mercado de escravos que os britânicos tinham abolido em todo o seu império, oficialmen­te em 1834, mas que permitiam e protegiam que os seus negreiros persistiss­em nos território­s de terceiros ou não efectivame­nte ocupados, como seria no caso dos território­s portuguese­s”. Entretanto, os representa­ntes portuguese­s na região foram estabelece­ndo acordos com os régulos e príncipes locais, ainda antes do reino de Portugal estar totalmente inteirado destas disputas. Só mais tarde foram aproveitad­as, no decurso da Partilha de África na Conferênci­a de Berlim (1884-1885).

Ainda de acordo com Mário Pinto, o faleciment­o de António Thiaba da Costa ocorreu em 28 de Agosto de 1913 e o neto de Thiaba e Piula decidiu, em breve, regressar a Mandarim com mais familiares, também interessad­os em edificar a sua árvore genealógic­a.

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