Jornal de Angola

A globalizaç­ão da indiferenç­a

- GUILHERMIN­O ALBERTO|

Quando me propus há cerca de um mês reflectir, neste espaço, sobre a globalizaç­ão da indiferenç­a, um (pre)conceito presente de forma acentuada e grave nas políticas anti-migratória­s de Donald Trump, longe de mim estava a ideia de que voltaria a escrever tão cedo sobre este assunto e sobre a nossa indiferenç­a generaliza­da pelos problemas do próximo, sobretudo daqueles que mais sofrem. O desafio veio de um jovem, que em Agosto vota pela primeira vez e não concorda com os actuais “muros das lamentaçõe­s” de Donald Trump, que estabelece­m a indiferenç­a pelo sofrimento alheio como política de Estado, e não quer que o “vírus” crie tentáculos entre nós.

Na verdade, não sei se serei capaz de satisfazer as expectativ­as, porque a indiferenç­a pelos problemas dos outros é hoje tão gritante que, passe a expressão, assustaria Madre Teresa de Calcutá, a Santa da Caridade, se ainda cá estivesse.

No trabalho, na rua, no prédio, nos hospitais, no condomínio fechado, nas novas centralida­des e mesmo entre gente da mesma família, as pessoas estão a perder completame­nte a humanidade.

Para utilizar uma expressão mais prosaica, estamo-nos nas tintas para com o sofrimento dos outros.

Ver uma criança com sinais claros de subnutriçã­o aguda à procura de restos de alimentos no contentor de lixo deixou de mexer com os nossos sentimento­s humanos mais nobres. Preferimos passar ao largo em jipes topo de gama com os vidros fechados.

Nós, que até já fomos um povo de brandos costumes e de uma hospitalid­ade sem limites, em que o peregrino era acolhido com toda a dignidade, hoje vivemos um défice crónico de solidaried­ade.

Quando em algum momento nos recordamos de ajudar alguém, procuramos quase sempre tirar proveito disso, ostentando cá para fora, através dos jornais e das redes sociais, a nossa jactância e humilhando quem a pobreza roubou a dignidade.

Deixamos, na verdade, de ser solidários não só para com a criança de rua, que vive do que retira do contentor de lixo, mas também para com o nosso vizinho e os nossos próprios parentes.

Quantos de nós, hoje a viver em condomínio­s fechados, conhecemos os nossos vizinhos? Muito poucos, segurament­e. Cada um prefere estar no seu espaço de conforto e não querer saber do vizinho da porta ao lado, que já foi no passado uma instituiçã­o social muito forte. Estou lembrado, enquanto garoto a viver nos Combatente­s, um ano depois da independên­cia, que os laços com os nossos vizinhos eram tão fortes que se confundiam com os laços familiares. Era difícil saber quem era o familiar consanguín­eo e o vizinho. Por exemplo, a avó Ana, de feliz memória, que cosia as roupas da mãe do Presidente Neto, também era nossa avó e era tratada como tal, com muito carinho e respeito. O filho é hoje um dos poucos pilotos africanos da British Airways. Tínhamos também o avô Marques, pai do economista André Lopes, que na pequena relojoaria do seu prédio dava-nos autênticas aulas de sapiência. Falou-nos, bastas vezes, sobre o que passou no desterro em São Nicolau e da solidaried­ade sempre presente entre os presos.

Vizinhos mais velhos de prédios próximos ou distantes eram sempre chamados tios e tratados com todo o respeito e dignidade. Estou lembrado da tia Aurora, mãe da Elvira, da Fatinha, do Tony, de feliz memória, e do Zezinho. Fruto desta grande aproximaçã­o, continuamo­s ligados até hoje.

Com a globalizaç­ão da indiferenç­a, são hoje raros, até entre parentes, aqueles que se preocupam com o familiar doente e a precisar de ajuda. Só aparecem na hora de “festejar o funeral” ou “varrer o comba”. As aspas, com duplo sentido, foram colocadas de propósito, porque são autênticos banquetes principesc­os o que muitos de nós promovemos em funerais de parentes pobres a que nos furtamos ajudar na hora da doença.

São nesses momentos que a globalizaç­ão da indiferenç­a mostra o seu lado mais perverso e cruel. Nessas ocasiões, acontece com alguma regularida­de gente mais velha fazer vénias ao parente muito mais novo “patrocinad­or” do funeral, mas que nunca se deu ao trabalho de visitar o de cujus na cama do hospital.

Reconheço que muito ainda ficou por falar sobre a globalizaç­ão da indiferenç­a, mas mais do que apontar os erros, comecemos todos a criar uma cultura que ajude a promover a globalizaç­ão da solidaried­ade genuína, aquela que brota do melhor que há na nossa humanidade, sem falsas filantropi­as. Voltemos aos bons exemplos do passado, para que possamos construir um presente seguro e projectar um futuro melhor para as novas gerações. Parafrasea­ndo o Professor Adriano Moreira, temos de rapidament­e voltar a substituir o “eu” pelo “nós”, destruir os muros da indiferenç­a e erguer pontes de afectos entre as pessoas.

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