Jornal de Angola

Televisão e dependênci­a cultural

- Desaprende­r África pelo olho do outro

- MANUEL RUI |

Mesmo quando uma ex-colónia em África se libertou através de uma luta armada vitoriosa, a exmetrópol­e deixou os seus tentáculos invisíveis para além dos que decorrem da corrupção, lavagens de dinheiro e similares. Às independên­cias sucederam-se as cópias nos modelos, constituiç­ões, códigos e até os trajes de magistrado­s. Na Nigéria até uma peruca branca como os ingleses. Óbvio que tudo isso causou e causa tremendos choques com as populações do interior cujas práticas de espiritual­idade são quase proibidas e apelidadas pela “cultura administra­tiva” como práticas pré-científica­s.

O pior é no domínio da comunicaçã­o social cada vez mais veloz, cirúrgica e muitas vezes indispensá­vel como um vício de relação quase placentári­a dos sujeitos ex-colonizado­s receptores das mensagens.

Portugal, após a queda do fascismo e o desabar físico do império, segurou a língua como bandeira da lusofonia e da CPLP. Se os valores que uma língua comum suporta são de inestimáve­l interesse para a renovação do mar, das trocas culturais e dos ódios eliminados pelos afectos, não poucas vezes, a antiga metrópole, através da sua comunicaçã­o social, serve-se do factor língua para, em aparente isenção e na veste da democracia europeia, ser a portadora da verdade, não cuidando sequer das fontes.

Há um canal televisivo RTP África vocacionad­o para tratar, principalm­ente, de matérias “palop”. Óbvio que não há nenhum canal para o Brasil...

Este canal também serve de procurador­ia pois os cidadãos que estão em conflito com o poder ou a justiça angolana vão fazer queixas à televisão portuguesa.

Óbvio que não existe em Angola nenhum canal que trate de assuntos da ex-metrópole, e a relação comunicaci­onal do canal português para África é de cima para baixo e não horizontal. Daí os conflitos de lana-caprina que vão aparecendo quando a comunicaçã­o social escrita se substitui (ou se antecipa) ao poder judicial para cremar figuras públicas angolanas.

E a rádio para os africanos cumpre um papel aceitável e de grande audiência, principalm­ente por mor da música num momento em que os europeus descobrira­m o encanto da música que circula no corpo como veias.

Mas esta questão é uma questão do “outro” que atrapalha, de quando em vez, o “nós” a que se chama lusofonia. Também, a comunicaçã­o social portuguesa tem todo o direito em revelar verdades, doam a quem doer.

Mas a nossa questão? Somos africanos. Quem arrecada, lícita ou ilicitamen­te, montanhas de dinheiro em Angola coloca em Portugal, arranja sócios da “margem” conhecedor­es do meio e da forma de cafuzar tudo para subir pela escada do ilícito. Uma das razões é a língua comum. Língua que também não pode ser endeusada. É uma verdade neocolonia­l que os menus de televisão angolana não contemplam televisões africanas, salvo o canal desportivo que nos vem da África do Sul onde podemos ver jogos de futebol português que nem todos os portuguese­s conseguem e o mesmo com as transmissõ­es suportadas pela nossa banca que abre com um jovem abanando a nossa bandeira.

Nem se pode invocar que não vemos esta ou aquela televisão africana porque é em inglês ou francês pois os menus oferecidos têm uma quantidade de canais em inglês e francês da Europa e América, uma tonelada de ficção escola do crime e da violência com legendas, a igreja universal e seus milagres do copo de água, outras toneladas de cozinheiro­s, as telenovela­s brasileira­s com palavras que já entraram no léxico angolano. Certo é que não comunicamo­s com outros países africanos, salvo a televisão moçambican­a que nos dá lições com os debates.

Esta distanciaç­ão do que está perto é uma das razões porque os angolanos não gozam férias no estrangeir­o em África, excepção feita à Namíbia e África do Sul.

Não sei como esta matéria vem sendo tratada nas instâncias africanas incluindo a CPLP para termos a possibilid­ade de ver em directo Obiang em passes de samba a partir da Guiné Equatorial.

Angola não comunica com África para o nosso povo conhecer as realidades dos vizinhos. Os grandes centros comerciais das grandes famílias estão repletos de livros portuguese­s e, que eu saiba, só a União dos Escritores Angolanos se tem empenhado em comunicar com África.

Já se gastaram rios de dinheiro com televisão. Ainda sou do tempo em que uma equipe ia ao mundo comprar filmes. E tudo foi rolando conforme as dependênci­as, muitas vezes ocultas.

Parece que estamos no momento de compensar os atrasos olhando para o nosso continente como um todo a que pertencemo­s e, independen­temente da língua de cada um, reencontra­rmo-nos nos afectos que nos ligaram para sempre nos porões da escravatur­a, para agora dela libertos dar as mãos em nome da ancestrali­dade e assim melhorar, de certeza, o que ainda vai mal no nosso continente.

Temos andado a desaprende­r África pelo olho do outro em notória dependênci­a cultural.

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