Televisão e dependência cultural
- Desaprender África pelo olho do outro
Mesmo quando uma ex-colónia em África se libertou através de uma luta armada vitoriosa, a exmetrópole deixou os seus tentáculos invisíveis para além dos que decorrem da corrupção, lavagens de dinheiro e similares. Às independências sucederam-se as cópias nos modelos, constituições, códigos e até os trajes de magistrados. Na Nigéria até uma peruca branca como os ingleses. Óbvio que tudo isso causou e causa tremendos choques com as populações do interior cujas práticas de espiritualidade são quase proibidas e apelidadas pela “cultura administrativa” como práticas pré-científicas.
O pior é no domínio da comunicação social cada vez mais veloz, cirúrgica e muitas vezes indispensável como um vício de relação quase placentária dos sujeitos ex-colonizados receptores das mensagens.
Portugal, após a queda do fascismo e o desabar físico do império, segurou a língua como bandeira da lusofonia e da CPLP. Se os valores que uma língua comum suporta são de inestimável interesse para a renovação do mar, das trocas culturais e dos ódios eliminados pelos afectos, não poucas vezes, a antiga metrópole, através da sua comunicação social, serve-se do factor língua para, em aparente isenção e na veste da democracia europeia, ser a portadora da verdade, não cuidando sequer das fontes.
Há um canal televisivo RTP África vocacionado para tratar, principalmente, de matérias “palop”. Óbvio que não há nenhum canal para o Brasil...
Este canal também serve de procuradoria pois os cidadãos que estão em conflito com o poder ou a justiça angolana vão fazer queixas à televisão portuguesa.
Óbvio que não existe em Angola nenhum canal que trate de assuntos da ex-metrópole, e a relação comunicacional do canal português para África é de cima para baixo e não horizontal. Daí os conflitos de lana-caprina que vão aparecendo quando a comunicação social escrita se substitui (ou se antecipa) ao poder judicial para cremar figuras públicas angolanas.
E a rádio para os africanos cumpre um papel aceitável e de grande audiência, principalmente por mor da música num momento em que os europeus descobriram o encanto da música que circula no corpo como veias.
Mas esta questão é uma questão do “outro” que atrapalha, de quando em vez, o “nós” a que se chama lusofonia. Também, a comunicação social portuguesa tem todo o direito em revelar verdades, doam a quem doer.
Mas a nossa questão? Somos africanos. Quem arrecada, lícita ou ilicitamente, montanhas de dinheiro em Angola coloca em Portugal, arranja sócios da “margem” conhecedores do meio e da forma de cafuzar tudo para subir pela escada do ilícito. Uma das razões é a língua comum. Língua que também não pode ser endeusada. É uma verdade neocolonial que os menus de televisão angolana não contemplam televisões africanas, salvo o canal desportivo que nos vem da África do Sul onde podemos ver jogos de futebol português que nem todos os portugueses conseguem e o mesmo com as transmissões suportadas pela nossa banca que abre com um jovem abanando a nossa bandeira.
Nem se pode invocar que não vemos esta ou aquela televisão africana porque é em inglês ou francês pois os menus oferecidos têm uma quantidade de canais em inglês e francês da Europa e América, uma tonelada de ficção escola do crime e da violência com legendas, a igreja universal e seus milagres do copo de água, outras toneladas de cozinheiros, as telenovelas brasileiras com palavras que já entraram no léxico angolano. Certo é que não comunicamos com outros países africanos, salvo a televisão moçambicana que nos dá lições com os debates.
Esta distanciação do que está perto é uma das razões porque os angolanos não gozam férias no estrangeiro em África, excepção feita à Namíbia e África do Sul.
Não sei como esta matéria vem sendo tratada nas instâncias africanas incluindo a CPLP para termos a possibilidade de ver em directo Obiang em passes de samba a partir da Guiné Equatorial.
Angola não comunica com África para o nosso povo conhecer as realidades dos vizinhos. Os grandes centros comerciais das grandes famílias estão repletos de livros portugueses e, que eu saiba, só a União dos Escritores Angolanos se tem empenhado em comunicar com África.
Já se gastaram rios de dinheiro com televisão. Ainda sou do tempo em que uma equipe ia ao mundo comprar filmes. E tudo foi rolando conforme as dependências, muitas vezes ocultas.
Parece que estamos no momento de compensar os atrasos olhando para o nosso continente como um todo a que pertencemos e, independentemente da língua de cada um, reencontrarmo-nos nos afectos que nos ligaram para sempre nos porões da escravatura, para agora dela libertos dar as mãos em nome da ancestralidade e assim melhorar, de certeza, o que ainda vai mal no nosso continente.
Temos andado a desaprender África pelo olho do outro em notória dependência cultural.