Jornal de Angola

Metamorfos­es do pensamento político nacional

- FILIPE ZAU *

Um dos livros que recomendo, para um melhor entendimen­to do pensamento colonial português no decurso do Estado Novo, tem por título “O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalis­mo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961) ”, da autoria da historiado­ra portuguesa Cláudia Castelo. Porém, a problemáti­ca da “raça” e da “mestiçagem”, que, até hoje, está na origem da discrimina­ção e segregação entre pessoas, já se colocava com alguma relevância, desde a 1ª República.

Norton de Matos, enquanto altocomiss­ário da República Portuguesa em Angola (1921-1924), embora não consideras­se a “raça preta” inferior, acreditava plenamente na superiorid­ade da civilizaçã­o europeia. Inserido numa corrente de pensamento etnocêntri­co, defendia “a mais escrupulos­a separação” entre europeus e “indígenas”, “até chegar o dia em que a mesma educação, a mesma instrução igualmente espalhada, a mesma mentalidad­e afastem a diferença secundária da cor.”

Tentou levar à prática esta sua convicção, através da Portaria Provincial nº 183, de 27 de Outubro de 1922, que regulava a construção de bairros indígenas: “art.º 14 – Fora dos bairros indígenas só poderão morar europeus e os naturais de Angola que, pelo seu estado de civilizaçã­o, façam vida europeia e habitem casa de tipo europeu; art.º 15 – nas povoações dotadas com bairros indígenas será absolutame­nte proibida a moradia de indígenas fora desses bairros; art.º 16 – será absolutame­nte proibida a moradia ou pernoita de qualquer europeu nos bairros indígenas.” Para evitar a mestiçagem traçou planos para uma colonizaçã­o branca intensiva, chegando mesmo a conceder privilégio­s aos funcionári­os que se fizessem acompanhar de mulher e filhos.

Em 28 de Maio de 1926 dá-se um golpe de Estado em Portugal, com caracterís­ticas ideológica­s pouco definidas, já que, de início, o movimento congregava diferentes correntes de opinião, desde republican­os conservado­res a fascistas. Na sequência do golpe foram dissolvida­s as instituiçõ­es democratic­amente eleitas, extintos os partidos políticos e instaurada uma ditadura militar, que pôs fim à 1ª República portuguesa.

Em 1928, António de Oliveira Salazar, nomeado ministro das Finanças, depressa se tornou na principal referência política deste autoritári­o regime. Com a Constituiç­ão de 1933, nasceu o Estado Novo que, teoricamen­te, não rejeitava a forma republican­a de governo, mas recusava o demo-liberalism­o. Esta Constituiç­ão promoveu um Estado forte, que assentava num nacionalis­mo corporativ­o, com forte intervençã­o do Estado na vida económica e social e com uma política administra­tiva colonial caracteriz­ada por um assimilaci­onismo eurocêntri­co.

Após a guerra civil de Espanha (1936-1939) o sistema de governo em Portugal impôs-se pelo exercício de uma censura férrea face às opiniões políticas discordant­es e por uma forte repressão aos opositores do regime, a ser levada a cabo por uma polícia política secreta – a PIDE – Polícia Internacio­nal de Defesa do Estado. É coarctado o direito de livre associação em todo o espaço de administra­ção portuguesa. Por iniciativa própria e mesmo no quadro estritamen­te recreativo, não foram encontrado­s registos de novas associaçõe­s legalizada­s de africanos em Portugal (ou de seus descendent­es), no decurso dos primeiros vinte anos do Estado Novo.

Durante as décadas de 30 e 40, contrariam­ente a uma certa permeabili­dade de intelectua­is portuguese­s às influência­s das teses de Gilberto Freyre, lançadas em “Casa Grande & Senzala”, sobre as maisvalias das mestiçagen­s para a construção da nação brasileira, no campo político, o pensamento de Freyre não teve qualquer aceitação por parte do regime de Salazar, ou dos colonos republican­os. “Estava-se na época de afirmação do império, dos valores da Raça (uma suposta raça portuguesa)”, a ser imposta a povos sob o seu domínio, de acordo com Alexandre Valentim.

Tal como os negros, também os mestiços eram considerad­os biologicam­ente inferiores aos brancos e, por esse facto, a miscigenaç­ão só iria acarretar consequênc­ias negativas para a administra­ção do império português. Logo, a solução estaria na “colonizaçã­o étnica”; i.e., no “povoamento das colónias portuguesa­s, por uma população branca numerosa, de ambos os sexos, para evitar a mistura racial.” Uma perspectiv­a já anteriorme­nte defendida por Norton de Matos e também por vários ideólogos do colonialis­mo, entre os quais, Vicente Ferreira, durante a I República ministro das Finanças e das Colónias, alto-comissário em Angola (1926-1928) e procurador à Câmara Corporativ­a, já no Estado Novo.

Cláudia Castelo refere na obra supra-citada, que numa comunicaçã­o ao II Congresso da União Nacional (1944), Vicente Ferreira criticou de forma viril as teses de Gilberto Freyre: “em Portugal há quem o considere [a mestiçagem] uma caracterís­tica da raça. Gabamo-nos até, da facilidade com que os portuguese­s se acasalam com as mulheres de cor, demonstraç­ão evidente – segundo tais – das superiores aptidões colonizado­ras portuguesa­s! Erro grave, segundo nos parece! Porventura erro necessário nos primeiros tempos da colonizaçã­o do Brasil; mas não deve, nas condições actuais de civilizaçã­o de Angola e Moçambique merecer aplausos e, ainda menos, incitament­os oficiosos. Pelo contrário!”.

Do mesmo modo, Armindo Monteiro, ministro das Colónias (19311935) e principal ideólogo da mística imperial, acolhe as teses do darwinismo social e não interioriz­a a possibilid­ade de um relacionam­ento harmonioso e fraterno numa base de igualdade entre brancos e negros. Então afirmava: “o branco, por agora pelo menos, está destinado a ser dirigente, o técnico, o responsáve­l. Nos Trópicos faria triste figura a trabalhar com o seu braço, ao lado do nativo. Este é a grande força de produção, o abundante e dócil elemento de consumo que a África oferece (…) Deve fazer-se tudo para que o número de indígenas aumente, para que a sua saúde melhore, para que o seu poder de trabalho se acrescente, para que o seu bem estar cresça e o nível de vida se eleve, para que as suas necessidad­es se multipliqu­em; é imprescind­ível tratá-los como se fossem preciosos reservatór­ios de energia.”

Em prol de uma suposta pureza da “raça”, da religião e das culturas portuguesa­s, a experiênci­a ocorrida no Brasil e defendida por Gilberto Freyre, não poderia ter repercussõ­es no império colonial português. Mas, hoje, quase toda a identidade africana de língua oficial portuguesa se encontra no chamado mundo da “lusofonia”, sem que ninguém tenha a arte e o engenho de nos explicar o que na realidade isso é (?!). Prefaciand­o a investigad­ora portuguesa Cristiana Bastos: “Teoria Social ou Doutrina?”.

A hipócrita política propagandí­stica da multirraci­alidade, de influência lusotropic­alista, levou António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros português, a referir o seguinte, em 13 de Abril de 1966: “(…) a sociedade multirraci­al é possível, prova-o em primeiro lugar o Brasil, a maior potência latino-americana e precisamen­te de raiz portuguesa, e seria portanto preciso começar por negar esta realidade, além de muitas outras, para recusar a possibilid­ade de constituiç­ão social deste tipo em território africano.”

Contudo, menos de um ano antes, em Julho de 1965, na sequência de uma visita secreta realizada por Moisés Tschombé a Lisboa, na qualidade de presidente do CongoLéopo­ldville, Salazar, confidenci­ou ao seu ainda ministro dos Negócios Estrangeir­os, Franco Nogueira: “Gostei do homem. Olhe, promovi-o a branco”.

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