O valor da palavra dada
Acordei com um pensamento claro, não sei ao certo se produto de um sonho, mas, resultado, tenho a certeza, de uma conversa antiga, a respeito da Palavra dada. Lembro-me de ter dito que, mais do que uma dívida monetária, caso disso se trate, estamos diante de algo mais profundo: a Palavra. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”(João 1.1).
Por mais que se fale a respeito, não se trata de uma simples operação de deve e haver, é algo muito mais profundo por se tratar de um acto de demonstração de confiaça, em que se hipoteca um bem superior, de valor inestimável.
Mais do que uma dívida material, a palavra dada, sobretudo, quando cedida, confiada de forma pacífica, não pode ser confundida com um bem roubado ou furtado, isto é, algo que nos seja retirado compulsiva ou sorrateiramente. A dívida, quando promessa, é o Verbo, o nosso Verbo, que depositamos em página alheia; a pessoa não se apropria de um bem nosso, nós é que a tornamos fiel depositária de um bem supremo.
Por norma, achamos por bem retocar a prosa, usando para isso laivos de poesia e fazemos jus do que, ainda que no subconsciente, remetemos para o que de mais puro e sagrado, logo equivalente ou mesmo sinónimo de tão grande valor, julgamos possuir, a nossa Honra. Em termos jurídicos, pode entender-se a dívida, resultante ou acompanhante de promessa, como passo para uma burla. Filosoficamente, a Dívida, paredes-meias com a Promessa, abana a estrutura de qualquer relação, por incluir no espólio, a Honra de cada um.
Em geral, a contracção de uma dívida material é feita a par de uma garantia dada por via da palavra, escrita ou dita, aquela que, de facto, serve mais como chave para abrir os cordões à bolsa alheia, além do que não existem acordos verdadeiros sem sorrisos, por mais que seja uma simples exposição dos marfins.
Sabemos da estória de uma mulher que moía carvão vegetal sempre que o marido, bacharel em Direito, mas apenas solicitador, fosse fechar um contrato. Como era fumador, o “cara-metade” tinha os dentes amarelecidos e para ela contava muito a brancura do sorriso.
Um sorriso ajuda nos contratos por deixar transparecer certa confiança entre as partes e a brancura dos dentes dá maior visão ao sorriso, como a aurora que desponta no final de uma noite de bréu. Mas, como diria a velha peixeira, além da escama luzidia, tem de se ver a vermelhidão da guelra para saber se a lambula é boa para o mufete.
Não basta, pois, ter boa cara, há que ter também coração. Por norma, é com a peixeira que o pescador aprende as manhas usadas em terra, mas é ele o primeiro a recordar que a mentira tem perna curta. É mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo, pois este, mesmo a mancar, põe-se a milhas de distância sempre que se sente acossado, enquanto o aldrabão permanece no local, confiante de que uma nova mentira dará credibilidade à primeira e por aí em diante, até ser apanhado com a boca na botija.
Lesto ou manco, o mentiroso compulsivo, além de psicopata, é um criador, uma espécie de repentista que substitui cada verso rimado por uma nova mentira, até dar forma a um castelo de cartas que ele mesmo acredita ser verdadeiro. Por norma, o mentiroso compulsivo tem terceiros como alvo, mas a maior vítima da mentira acaba por ser ele mesmo, crédulo da veracidade de um facto criado por si próprio.
Verdadeiro mentiroso é aquele que de tanto mentir acaba por acreditar em si mesmo. No início, ele sabe ser um facto criado, mas depois, passa a considerá-lo verdadeiro. O mentiroso compulsivo dribla qualquer interrogatório dos serviços de inteligência e consegue suplantar o detector de mentiras, pois tem aldrabados os próprios impulsos nervosos.
E quando o próprio corpo aceita a inverdade como facto, sobram incautos. Até porque, na maioria das vezes, os ditos desprevenidos são“primos direitos” dos aldrabões, gente que há muito retirou o não mentir da lista de imperativos categóricos e, se ainda não fizeram da falsidade uma arte, para lá tendem, malembizados apenas pelo sorteio das oportunidades.
Não mentir por medo de ser apanhado não anula de todo o cheiro a enxofre que se diz exalarem os actos diabólicos. Enquanto é sagrado o respeito pela palavra dada, é mundana a escorregadela na casca da mentira. A única diferença entre aquele que mente simplesmente e o mentiroso compulsivo está na forma como demonstra a satisfação. Diríamos que aquele que mente, sorri diante da consumação do facto, enquanto o mentiroso compulsivo ri-se da vítima.