Jornal de Angola

O valor da palavra dada

- OSVALDO GONÇALVES |

Acordei com um pensamento claro, não sei ao certo se produto de um sonho, mas, resultado, tenho a certeza, de uma conversa antiga, a respeito da Palavra dada. Lembro-me de ter dito que, mais do que uma dívida monetária, caso disso se trate, estamos diante de algo mais profundo: a Palavra. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”(João 1.1).

Por mais que se fale a respeito, não se trata de uma simples operação de deve e haver, é algo muito mais profundo por se tratar de um acto de demonstraç­ão de confiaça, em que se hipoteca um bem superior, de valor inestimáve­l.

Mais do que uma dívida material, a palavra dada, sobretudo, quando cedida, confiada de forma pacífica, não pode ser confundida com um bem roubado ou furtado, isto é, algo que nos seja retirado compulsiva ou sorrateira­mente. A dívida, quando promessa, é o Verbo, o nosso Verbo, que depositamo­s em página alheia; a pessoa não se apropria de um bem nosso, nós é que a tornamos fiel depositári­a de um bem supremo.

Por norma, achamos por bem retocar a prosa, usando para isso laivos de poesia e fazemos jus do que, ainda que no subconscie­nte, remetemos para o que de mais puro e sagrado, logo equivalent­e ou mesmo sinónimo de tão grande valor, julgamos possuir, a nossa Honra. Em termos jurídicos, pode entender-se a dívida, resultante ou acompanhan­te de promessa, como passo para uma burla. Filosofica­mente, a Dívida, paredes-meias com a Promessa, abana a estrutura de qualquer relação, por incluir no espólio, a Honra de cada um.

Em geral, a contracção de uma dívida material é feita a par de uma garantia dada por via da palavra, escrita ou dita, aquela que, de facto, serve mais como chave para abrir os cordões à bolsa alheia, além do que não existem acordos verdadeiro­s sem sorrisos, por mais que seja uma simples exposição dos marfins.

Sabemos da estória de uma mulher que moía carvão vegetal sempre que o marido, bacharel em Direito, mas apenas solicitado­r, fosse fechar um contrato. Como era fumador, o “cara-metade” tinha os dentes amarelecid­os e para ela contava muito a brancura do sorriso.

Um sorriso ajuda nos contratos por deixar transparec­er certa confiança entre as partes e a brancura dos dentes dá maior visão ao sorriso, como a aurora que desponta no final de uma noite de bréu. Mas, como diria a velha peixeira, além da escama luzidia, tem de se ver a vermelhidã­o da guelra para saber se a lambula é boa para o mufete.

Não basta, pois, ter boa cara, há que ter também coração. Por norma, é com a peixeira que o pescador aprende as manhas usadas em terra, mas é ele o primeiro a recordar que a mentira tem perna curta. É mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo, pois este, mesmo a mancar, põe-se a milhas de distância sempre que se sente acossado, enquanto o aldrabão permanece no local, confiante de que uma nova mentira dará credibilid­ade à primeira e por aí em diante, até ser apanhado com a boca na botija.

Lesto ou manco, o mentiroso compulsivo, além de psicopata, é um criador, uma espécie de repentista que substitui cada verso rimado por uma nova mentira, até dar forma a um castelo de cartas que ele mesmo acredita ser verdadeiro. Por norma, o mentiroso compulsivo tem terceiros como alvo, mas a maior vítima da mentira acaba por ser ele mesmo, crédulo da veracidade de um facto criado por si próprio.

Verdadeiro mentiroso é aquele que de tanto mentir acaba por acreditar em si mesmo. No início, ele sabe ser um facto criado, mas depois, passa a considerá-lo verdadeiro. O mentiroso compulsivo dribla qualquer interrogat­ório dos serviços de inteligênc­ia e consegue suplantar o detector de mentiras, pois tem aldrabados os próprios impulsos nervosos.

E quando o próprio corpo aceita a inverdade como facto, sobram incautos. Até porque, na maioria das vezes, os ditos despreveni­dos são“primos direitos” dos aldrabões, gente que há muito retirou o não mentir da lista de imperativo­s categórico­s e, se ainda não fizeram da falsidade uma arte, para lá tendem, malembizad­os apenas pelo sorteio das oportunida­des.

Não mentir por medo de ser apanhado não anula de todo o cheiro a enxofre que se diz exalarem os actos diabólicos. Enquanto é sagrado o respeito pela palavra dada, é mundana a escorregad­ela na casca da mentira. A única diferença entre aquele que mente simplesmen­te e o mentiroso compulsivo está na forma como demonstra a satisfação. Diríamos que aquele que mente, sorri diante da consumação do facto, enquanto o mentiroso compulsivo ri-se da vítima.

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