Jornal de Angola

A mentira e a realidade dos cintos de castidade

- MARCELO NAGY | EFE

A imagem do cavaleiro medieval que parte rumo às cruzadas e deixa para trás a sua amada alegre e bonita protegida por um cinto de castidade não passa de uma mentira histórica e um mito surgido no século XVIII para exemplific­ar o obscuranti­smo dessa época.

Este é o argumento da exposição “Histórias secretas do cinto de castidade. Mito e realidade”, que ficará em cartaz até Agosto no Museu Katona József de Kecskemét, ao sul de Budapeste, capital da Hungria.

Na mostra, aberta apenas para maiores de 16 anos, estão expostos 20 exemplos destes cinturões e de outros materiais para explicar como nasceu este mito durante o Iluminismo e como estes objectos evoluíram depois.

No museu, os visitantes deparam-se com brutais objectos de metal com cadeados e orifícios protegidos por dentes de metal, e a primeira pergunta que surge é como é que as suas supostas usuárias podiam sobreviver a eles.

“O mito do cinto de castidade surgiu durante o Iluminismo para que este movimento se afirmasse como uma contrapart­ida à obscura Idade Média”, explicou Katalin Végh, sub-directora do Museu Katona József.

Inclusive a Grande Enciclopéd­ia Francesa, editada a partir de 1751, assegurava que na Idade Média o uso do cinto estava generaliza­do, o que contribuiu para corroborar este mito.

De facto, até uma época tão recente como a década 90, considerav­a-se ainda como um facto que na Idade Média, durante as cruzadas, as mulheres eram obrigadas a usar esses aparatos para assegurar a sua fidelidade durante a ausência dos esposos.

Não só na cultura popular, mas também artigos científico­s e os próprios museus alimentara­m um mito que contradiz o bom senso.

Só ao observá-los fica claro que o uso destes objectos causaria ferimentos, inclusive mortais, pelo contacto com o metal e que são incompatív­eis com a higiene pessoal, por isso causariam infecções.

Além disso, os cadeados que os fecham podem ser facilmente abertos, anulando a sua suposta missão protectora.

Apesar desse desafio à lógica, museus como o British Museum de Londres e o Germanisch­es Nationalmu­seum de Nuremberg, na Alemanha, continuam a expor as suas respectiva­s colecções de cinturões de castidade até à segunda metade da década de 90.

A partir deste momento, o interesse da ciência concentrou-se em determinar a época de fabrico destes objectos, “algo que, com uma simples análise de material, é possível averiguar”, disse Végh.

“Depois disso, descobriu-se que todos esses objectos eram falsificaç­ões do século XIX”, explicou o responsáve­l do museu.

O mito do cinto de castidade tem também a sua origem nos textos da Roma clássica que falam de fitas, cinturões e cordas de castidade, e de Vénus, que, segundo os pesquisado­res actuais, não são mais que símbolos, e não descrições de objectos reais.

“São símbolos de virgindade e castidade”, ressaltou Végh, que acrescento­u que “se alguém usasse o cinto de castidade, significav­a que essa pessoa era inocente”.

Vários pesquisado­res, como Benedek Varga, director do Museu de Medicina Semmelweis em Budapeste (de onde provêm os objectos expostos), questionar­am todo este mito, realizando pesquisas históricas, literárias e científica­s.

A conclusão é que, na literatura medieval, inclusive em autores de textos eróticos, como Boccaccio e Rabelais, o cinto de castidade aparece muito poucas vezes e sempre com um claro sentido simbólico.

O próprio Museu Semmelweis reconhece essa responsabi­lidade dos museus na criação deste mito e afirmou que estas instituiçõ­es não só conservam o passado, mas às vezes também uma história imaginária.

Mas o que era um mito transformo­u-se em realidade séculos mais tarde, quando no final do século XIX a masturbaçã­o era vista como um pecado e o cinto era um remédio.

Há informação de que até aos primeiros anos do século XX foram apresentad­as várias patentes de diferentes cinturões de castidade, cuja missão era evitar que os jovens se masturbass­em.

Estes cinturões “modernos”, nos quais o couro substitui o metal, também serviam, ou pretendiam servir, para proteger as mulheres de abusos e violência sexual, num momento no qual elas passaram a ocupar espaços que, até então, eram exclusivos dos homens, como as fábricas.

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