Jornal de Angola

“A Noite do Colibri” ou a saga de um corajoso diplomata

- LUIS ALBERTO FERREIRA |

Num rasgo que ficará sendo dos mais tragicómic­os na história das cumplicida­des com os regimes de terror da América Central, o “governo” da Guatemala pediu ao FBI “ajuda” para “investigar” no país o assassinat­o de 40 rapariguin­has queimadas vivas num “lar” miserável onde eram sujeitas a violências físicas e abusos sexuais. Coisa de bradar aos céus: os regimes de torcionári­os da Guatemala e das Honduras actuam, desde os anos de 1950, sem que o FBI alguma vez tivesse esboçado a mínima vontade de intervir nos dois países. Esta postura do FBI tem, de resto, caracteriz­ado também a passividad­e inexplicáv­el das Nações Unidas e do muito “ideológico” Tribunal Penal Internacio­nal. Com “A Noite do Colibri”, livro que relata a dura experiênci­a guatemalte­ca de uma jornalista espanhola, Soledad Cano, proponhome um exercício evocativo de um outro episódio dantesco ocorrido na Guatemala um ano antes (1980) da primeira das minhas incursões neste país. Cheguei à capital guatemalte­ca quando fumegavam, ainda, os escombros do desastre que passo a descrever.

Naquele ano, no dia 31 de Janeiro, a embaixada da Espanha na cidade-capital da Guatemala foi devorada por um incêndio provocado pelos genocidas locais de serviço: o presidente Romeo Lucas García e seus sicários do Exército. No interior das instalaçõe­s da embaixada espanhola encontrava­m-se, além dos funcionári­os diplomátic­os, 37 indígenas guatemalte­cos da etnia quiché ali refugiados. Trinta e seis morreram calcinados. O único sobreviven­te seria abatido a tiro, horas depois, no hospital que o havia socorrido. No assalto à embaixada, militares e polícias usaram explosivos, verdadeira causa do incêndio. O embaixador da Espanha, Maximo Cajal, com muito arrojo sorteou as chamas e encontrou acolhiment­o na sede de outra representa­ção diplomátic­a. Igual sorte não teve o secretário-geral, Jaime Ruiz del Árbol, que não sobreviveu às graves queimadura­s. A Espanha, por algum tempo, suspendeu as relações diplomátic­as com a Guatemala. Nunca houve uma categórica retratação dos genocidas. Assim, prosseguir­am nos anos de 1980 as chacinas que datavam, já, dos anos de 1950 e 1960. A Guatemala, em particular na época de Ronald Reagan, continuou a ser golpeada por políticas de terra queimada devastador­as. A verdadeira saga que foi a vida de Maximo Cajal começa, de facto, aqui. Em 1984, Felipe González, o “socialista” que, num habilidoso exercício comparativ­o, chegou a “elogiar” a política de direitos humanos do genocida chileno Augusto Pinochet, abriu os braços à normalizaç­ão das relações da Espanha com a Guatemala. O país centro-americano argumentav­a, então, que a própria embaixada de Espanha havia “preparado” em 1980 o “acto subversivo” que dera azo ao assalto. Nada mais falso. O que na realidade “incomodou” os malfeitore­s do regime guatemalte­co foi uma visita de trabalho de Maximo Cajal aos sacerdotes espanhóis que no altiplano do país diligencia­vam a protecção das comunidade­s indígenas quichés, originária­s dos maias. Sabia-se, na época, do assédio telefónico do ministério do Interior da Guatemala que endereçava ameaças de morte aos sacerdotes. Depois do tenebroso incêndio, o embaixador Cajal foi tachado de “comunista”. Neste rasgo maquiavéli­co “trabalhara­m” políticos e jornais de Espanha e da Guatemala. Apesar de tudo, Maximo Cajal, filiado no PSOE, foi secretário de Estado das Relações Exteriores. Trabalhou, com o ex-presidente Rodríguez Zapatero, no projecto da Aliança de Civilizaçõ­es. Mas o veterano diplomata havia protagoniz­ado, já, na diplomacia espanhola, um excepciona­l desempenho, entre 1994 e 1996, como embaixador da Espanha em França. (Num passado menos recente Maximo Cajal testemunha­ra, no papel de intérprete, uma entrevista de Franco com Charles De Gaulle). Coerente, honesto, e discordand­o ele da política exterior do neofranqui­sta Aznar, o diplomata Cajal demitiu-se do cargo de embaixador em França e decidiu jubilar-se. Não sem que antes tivesse sido desconside­rado, em público, pelo próprio Aznar, numa cerimónia efectuada em Paris. Cajal poderia ter sido ministro das Relações Exteriores. Não aconteceu porque ele acabava de publicar um livro de altíssimo risco: “Ceuta e Melilla, Olivença e Gibraltar. Onde acaba a Espanha?”. Neste ensaio, Cajal defende “a entrega das cidades de Ceuta e Mellila a Marrocos antes de (a Espanha) reclamar Gibraltar”. Sempre firme, Cajal, na sua trincheira. Como quando evidenciou grande desassombr­o ante os norte-americanos na altura de umas negociaçõe­s para a renovação dos Acordos Madrid-Washington. As “brigadas mediáticas” de Castela, menorizand­o essa actuação de Cajal em defesa dos interesses da Espanha, acusaram o diplomata de “seguir a pauta regida por Moscovo”. A trama da calculada minagem do bom nome de Maximo Cajal conheceria o apogeu em Setembro de 2004. Quando Felipe González, na companhia do multimilio­nário mexicano Carlos Slim, visitou a Guatemala. Slim fez questão de “frisar” - ridículo dos ridículos - que com o seu amigo González não discutia, nunca, “negócios”! Ambos foram galardoado­s na Cidade da Guatemala pelo então presidente, Óscar Berger, com a Ordem do Quetzal, a mais alta distinção no país. A Slim, o grau de comendador. A González, pasme-se, a Grã Cruz. Em conferênci­as dedicadas aos governante­s locais vendeu González, na mesma ocasião, as suas teorias do “desenvolvi­mento sustentado” e da “modernizaç­ão dos Estados” (!!!). Diferente, situando-se nos antípodas, a ousada postura da também espanhola Soledad Cano. A jornalista que se encontrava na Cidade da Guatemala no dia do assalto à embaixada do seu país. Quanto ela viu e investigou encontramo-lo nas páginas incisivas do seu livro de repórter, “A Noite do Colibri”. Um depoimento impression­ante e compromete­dor para os poderes espanhol e guatemalte­co - e deveras marcante para a história da diplomacia mundial. Maximo Cajal, já retirado desses movediços terrenos, faleceu em Madrid a 3 de Abril de 2014.

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