Jornal de Angola

Efeitos sociais e biológicos que resultam de uma lei

- CLÁUDIO TOMÁS |*

No debate sobre a despenaliz­ação do aborto, os argumentos têmse invariavel­mente centrado, por um lado, na necessidad­e de estabelece­r como valor absoluto a “vida”, sendo que esta deve merecer uma abordagem de continuida­de desde “o momento da concepção” e ser equiparada a quaisquer outros estágios da vida do ser humano. Por outro lado, temos uma discussão toda feita em torno dos direitos das mulheres e da liberdade de escolha. Como vemos são coisas diferentes. Afinal de contas, sempre podemos ter feministas a discutirem questões relativas ao valor da vida humana, à maternidad­e e às percepções das relação saudáveis entre mãe e filhos; ou, por outro lado, também podemos ver padres e pastores a terem discussões muito interessan­tes sobre os direitos das mulheres na nossa sociedade.

Noutro plano, não temos visto qualquer outro sector da sociedade a dirigir-se e a indignar-se, exclusivam­ente, contra a liberdade das mulheres.

Desta feita, no debate sobre o aborto é quase como que impossível pôr estes dois campos da discussão num mesmo plano. A impossibil­idade vem de que um está fechado numa abordagem biológica da vida e o outro no discurso da vida socialment­e plena e qualificad­a. E, deste modo, biologia e sociedade — ou se quisermos, expectativ­as sociais concretiza­das em direitos — mantêm-se em planos diferentes na ordem da discussão. E por mais que uns gritem “pró-vida” e outros liberdade, nunca chegaremos a ter contributo­s valiosos para o debate público.

Contudo, o grande problema no meio disto tudo é o Estado, que tendo a necessidad­e de adoptar uma narrativa conciliado­ra, humanista, moderna e inclusiva, experiment­a na questão do aborto as suas próprias contradiçõ­es. Primeiro é que não pode sustentar uma narrativa de igualdade e paridade de género enquanto as mulheres forem penalizada­s pela sua especifici­dade biológica. São condenadas por leis que as reduzem à sua condição biológica, leis que não são universais por não preverem a sua aplicação indiferenc­iada a todos os cidadãos, mas apenas às mulheres.

Estamos a criar cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. E o Estado, nesta matéria, a contribuir para que se produza uma racionalid­ade bifurcada nos seus fundamento­s na relação com os cidadãos. Ou seja, uma racionalid­ade jurídica específica a determinad­os cidadãos com base numa imposta “categoria” biológica especial.

A maior reivindica­ção na matéria sobre o aborto tem precisamen­te a ver com este constrangi­mento que fecha as mulheres numa categoria jurídica e política específica. As mulheres têm sobre elas a coacção da lei que torna as suas experiênci­as sociais substancia­lmente diferentes das dos homens. Ou seja, em relação a estes, uma vida civicament­e mais pobre em decorrênci­a da sua limitada liberdade. A perfídia de uma lei deste género está em transforma­r as mulheres em seres “privados” e “domésticos”. Ou seja, põe-nas na condição primordial para que continuem a ser inteiramen­te dominadas.

O debate sobre o aborto colocanos neste dilema. Libertar as mulheres, tornando-as pessoas jurídicas e cidadãs em igual circunstân­cia que os homens através de despenaliz­ação de uma lei que as reduz à sua natureza ou, sob o argumento de termos de preservar a vida, onerarmos a mulher, e só a mulher, através da apropriaçã­o do seu útero. Com o problema de que aqui o Estado nos vincula a todos, até os que são pela liberdade de escolha.

Despenaliz­ar o aborto tem o efeito imediato de aumentar as possibilid­ade de as mulheres poderem experienci­ar o mundo social e político em igualdade de direitos com os homens. Mas tem também o efeito directo de libertar o Estado da responsabi­lidade de tutelar o corpo das mulheres e de transforma­r o útero num bem público. E, por fim, despenaliz­ar o aborto libertar-nos-á a todos nós, angolanas e angolanos, desta lógica castradora e da sanha inquisitor­ial sobre a sexualidad­e das mulheres.

A manter-se o aborto punível por lei, vingará o argumento que se inspira na abordagem biológica. Contudo, o bom senso nos diz que, em campos tão vagos da biologia, o melhor é o Estado demitirse de legislar. Aqui, não legislar sobre esta matéria seria simplesmen­te despenaliz­ar o aborto, remetendo-o para o fórum das escolhas livres ou, se quisermos, para o direito subjectivo.

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