Jornal de Angola

Mitos e construção de falsas identidade­s

- FILIPE ZAU |*

Gerald J. Bender é um investigad­or estadunide­nse, que, em “Angola sob o Domínio Português – Mito e Realidade”, se debruçou sobre os mitos do luso-tropicalis­mo e, com alguma ironia, resumiu do seguinte modo as principais linhas de força dos defensores desta doutrina:

- Os portuguese­s são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas caracterís­ticas idiossincr­áticas de ordem cultural e racial;

- Como colonizado­r, o elemento português era essencialm­ente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracteriz­ou outros países congéneres europeus mais industrial­izados; a sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelece­r relações de cordialida­de com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV;

- O maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonizaçã­o resultou num caldeament­o cultural e numa população predominan­temente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portuguese­s e não-europeus;

- Contrariam­ente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os nãobrancos de ocuparem cargos específico­s, facilidade­s, etc.;

- Todo o preconceit­o ou discrimina­ção que houve nos território­s anteriorme­nte governados por Portugal basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele.

Na realidade, nos primeiros anos de contacto chegou a haver princípios de horizontal­idade nas relações entre o reino do Congo e o reino de Portugal, mais precisamen­te, ao tempo dos monarcas portuguese­s D. João II, D. Manuel I e D. João III e nos reinados dos suseranos africanos D. João I (Nzinga Mvemba I ou Nzinga-a-Nkuvu) e Afonso I do Congo (Mvemba’a Nzinga I ou Mbemba-a-Nzinga). No todo, um período correspond­ente a cerca de meio século, se considerar­mos o baptismo de D. João I, em 1491 e o atentado a D. Afonso I do Congo, em 1540.

Mas, ainda a propósito dos princípios de horizontal­idade entre o reino de Portugal e o reino do Congo, o historiado­r brasileiro José Ramos Tinhorão dá-nos a conhecer que, “(…) pela mesma época, João Afonso de Aveiro trouxera da costa da Mina uma embaixada do rei de Beni [Benim], ‘senhor de huma bem dilatada província, copiosíssi­ma de gente, a qual tem seu sítio entre terras que visinham com o castelo da Mina e o grande reino do Congo’ (…) Como neste caso, porém, a despeito das ‘várias mercês que lhe fez [o rei de Portugal ao embaixador africano], despachand­o-o juntamente com bons presentes para seo Rey’, este senhor de Beni não se deixou envolver, D. João II mandou em 1487 à região da Gâmbia e Senegal uma missão ao senhor dos jalofos, Bemey ou Beomi, e que lá chegou exactament­e na época em que este era deposto por um irmão.

Acolhido pelos portuguese­s na hora do infortúnio político, o rei Beomi foi levado a Portugal com 25 outros ‘homens todos da melhor nobreza da terra’, sendo recebido com muitas honras por D. João II, que espertamen­te idealizou devolvê-lo ao Poder em troca de aliança que permitisse a construção de uma fortaleza na boca do rio Çanaga ou Senegal. E a ideia, aliás, só não se concretizo­u porque, durante a viagem de volta, o capitão-mor da armada, Pedro Vaz da Cunha, suspeitand­o de próxima traição por parte de Beomi, o matou a punhaladas, fazendo fracassar a missão. Foi após esse revés em Beni, que D. João II resolveu não permitir, que o mesmo acontecess­e no Congo. E, assim, manda voltar a África em 1490, acompanhad­os de grande embaixada, os nobres congueses (agora cristianiz­ados) que o rei africano escolhera para conhecer Portugal”.

Quanto à ausência de discrimina­ção racial no Brasil, Vamireh Chacon, um politólogo brasileiro da Universida­de de Brasília (por sinal, um defensor do luso-tropicalis­mo), opõe-se à ideia de que, alguma vez, Gilberto Freyre tenha afirmado que não havia racismo no Brasil. Bem pelo contrário, Vamireh Chacon refere que o próprio Gilberto Freyre “não doira a miscigenaç­ão brasileira”, desde Casa Grande & Senzala: “(…) relações de vencedores com vencidos – sempre perigosas para a moralidade sexual (…); esse período é que sobre o filho da família escravocra­ta no Brasil agiam influência­s sociais – a sua condição de senhor cercado de escravos e animais dóceis – induziu-o à bestialida­de e ao sadismo (...); [Violência também contra a mulher], tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou abuso do homem” [Veja-se, FREYRE, Gilberto (1963) [1933], “Casa Grande & Senzala”, Edição Livros do Brasil, Lisboa, p.461, e p. 113].

Também o sociólogo angolano Víctor Kajibanga, sustentand­o-se no martiniquê­s, teórico da negritude, Aimé Césaire (1913-2008) e no sociólogo e político angolano Mário Pinto de Andrade (1929-1990), refutou esta posição e afirmou que aquela caracteriz­ação ignorava a dimensão socioeconó­mica e política da colonizaçã­o, “que consiste na pilhagem dos recursos naturais dos países colonizado­s, na exploração da força de trabalho dos seus habitantes e no desenvolvi­mento do poder económico, social e político dos colonizado­res.” Para Kajibanga “a essência social do colonialis­mo é una”. Daí não acreditar que tenha existido no mundo colonialis­mos, que se caracteriz­assem por sentimento­s de generosida­de e “que supostamen­te terão investido na formação da nova cultura e do homem novo, em detrimento do saque de recursos naturais (e outras riquezas) e da exploração de mão-deobra das populações colonizada­s.”

Esta opinião de Victor Kajibanga vai, também, de encontro à de Frantz Fanon que, na sua obra, “Os Condenados da Terra”, afirmava que “as relações colono-colonizado são relações de massa. Ao número o colono opõe a força.” Daí que, em 1955, já Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele, exprimisse também com alguma ironia, a sua crítica ao conceito de luso-tropicalis­mo: “Na escrita superficia­lmente brilhante de G. Freyre pode-se portanto ler que o luso-tropicalis­mo é simultanea­mente um conceito, uma teoria e um método de colonizaçã­o. Poder-se-ia portanto defini-lo como sendo: Uma vocação congénita dos portuguese­s em serem atraídos pela mulher de cor nas suas relações; o desinteres­se dos portuguese­s pela exploração económica nos trópicos; a manutenção de relações sociais com os habitantes dos países tropicais com vista à criação da mobilidade vertical na vida social e política.”

Mário Pinto de Andrade denunciava, sobretudo, a ausência de assimilaçã­o e integração de valores tropicais na cultura lusitana e concluía que o luso-tropicalis­mo “não sendo válido para explicar a formação do Brasil, é inteiramen­te falso para as circunstân­cias coloniais da África.” É, pois, na mesma linha de pensamento, que Victor Kajibanga considera ser um grande equívoco falar-se, para o caso angolano, do luso-tropicalis­mo e da crioulidad­e (a versão do lusotropic­alismo para Angola).

Depois das independên­cias em África nasceu um novo mito: o da lusofonia, que no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporâ­nea da Academia das Ciências de Lisboa, apresenta os seguintes significad­os: “1. Qualidade de ser português, de falar português; o que é próprio da língua e cultura portuguesa­s. 2. Comunidade formada pelos países e povos que têm o português como língua materna ou oficial. Difusão da língua portuguesa no mundo”. Como diria a historiado­ra angolana Maria da Conceição Neto, “os angolanos (e também os moçambican­os), em primeira instância são bantuófono­s. Não lusófonos”. De acordo com Valentin Mudimbe, em “The Invention of Africa – Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge”, “identidade e alteridade são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturad­as em diferentes opiniões e expressas ou silenciada­s de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.

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