Mitos e construção de falsas identidades
Gerald J. Bender é um investigador estadunidense, que, em “Angola sob o Domínio Português – Mito e Realidade”, se debruçou sobre os mitos do luso-tropicalismo e, com alguma ironia, resumiu do seguinte modo as principais linhas de força dos defensores desta doutrina:
- Os portugueses são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas características idiossincráticas de ordem cultural e racial;
- Como colonizador, o elemento português era essencialmente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracterizou outros países congéneres europeus mais industrializados; a sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelecer relações de cordialidade com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV;
- O maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonização resultou num caldeamento cultural e numa população predominantemente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portugueses e não-europeus;
- Contrariamente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os nãobrancos de ocuparem cargos específicos, facilidades, etc.;
- Todo o preconceito ou discriminação que houve nos territórios anteriormente governados por Portugal basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele.
Na realidade, nos primeiros anos de contacto chegou a haver princípios de horizontalidade nas relações entre o reino do Congo e o reino de Portugal, mais precisamente, ao tempo dos monarcas portugueses D. João II, D. Manuel I e D. João III e nos reinados dos suseranos africanos D. João I (Nzinga Mvemba I ou Nzinga-a-Nkuvu) e Afonso I do Congo (Mvemba’a Nzinga I ou Mbemba-a-Nzinga). No todo, um período correspondente a cerca de meio século, se considerarmos o baptismo de D. João I, em 1491 e o atentado a D. Afonso I do Congo, em 1540.
Mas, ainda a propósito dos princípios de horizontalidade entre o reino de Portugal e o reino do Congo, o historiador brasileiro José Ramos Tinhorão dá-nos a conhecer que, “(…) pela mesma época, João Afonso de Aveiro trouxera da costa da Mina uma embaixada do rei de Beni [Benim], ‘senhor de huma bem dilatada província, copiosíssima de gente, a qual tem seu sítio entre terras que visinham com o castelo da Mina e o grande reino do Congo’ (…) Como neste caso, porém, a despeito das ‘várias mercês que lhe fez [o rei de Portugal ao embaixador africano], despachando-o juntamente com bons presentes para seo Rey’, este senhor de Beni não se deixou envolver, D. João II mandou em 1487 à região da Gâmbia e Senegal uma missão ao senhor dos jalofos, Bemey ou Beomi, e que lá chegou exactamente na época em que este era deposto por um irmão.
Acolhido pelos portugueses na hora do infortúnio político, o rei Beomi foi levado a Portugal com 25 outros ‘homens todos da melhor nobreza da terra’, sendo recebido com muitas honras por D. João II, que espertamente idealizou devolvê-lo ao Poder em troca de aliança que permitisse a construção de uma fortaleza na boca do rio Çanaga ou Senegal. E a ideia, aliás, só não se concretizou porque, durante a viagem de volta, o capitão-mor da armada, Pedro Vaz da Cunha, suspeitando de próxima traição por parte de Beomi, o matou a punhaladas, fazendo fracassar a missão. Foi após esse revés em Beni, que D. João II resolveu não permitir, que o mesmo acontecesse no Congo. E, assim, manda voltar a África em 1490, acompanhados de grande embaixada, os nobres congueses (agora cristianizados) que o rei africano escolhera para conhecer Portugal”.
Quanto à ausência de discriminação racial no Brasil, Vamireh Chacon, um politólogo brasileiro da Universidade de Brasília (por sinal, um defensor do luso-tropicalismo), opõe-se à ideia de que, alguma vez, Gilberto Freyre tenha afirmado que não havia racismo no Brasil. Bem pelo contrário, Vamireh Chacon refere que o próprio Gilberto Freyre “não doira a miscigenação brasileira”, desde Casa Grande & Senzala: “(…) relações de vencedores com vencidos – sempre perigosas para a moralidade sexual (…); esse período é que sobre o filho da família escravocrata no Brasil agiam influências sociais – a sua condição de senhor cercado de escravos e animais dóceis – induziu-o à bestialidade e ao sadismo (...); [Violência também contra a mulher], tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou abuso do homem” [Veja-se, FREYRE, Gilberto (1963) [1933], “Casa Grande & Senzala”, Edição Livros do Brasil, Lisboa, p.461, e p. 113].
Também o sociólogo angolano Víctor Kajibanga, sustentando-se no martiniquês, teórico da negritude, Aimé Césaire (1913-2008) e no sociólogo e político angolano Mário Pinto de Andrade (1929-1990), refutou esta posição e afirmou que aquela caracterização ignorava a dimensão socioeconómica e política da colonização, “que consiste na pilhagem dos recursos naturais dos países colonizados, na exploração da força de trabalho dos seus habitantes e no desenvolvimento do poder económico, social e político dos colonizadores.” Para Kajibanga “a essência social do colonialismo é una”. Daí não acreditar que tenha existido no mundo colonialismos, que se caracterizassem por sentimentos de generosidade e “que supostamente terão investido na formação da nova cultura e do homem novo, em detrimento do saque de recursos naturais (e outras riquezas) e da exploração de mão-deobra das populações colonizadas.”
Esta opinião de Victor Kajibanga vai, também, de encontro à de Frantz Fanon que, na sua obra, “Os Condenados da Terra”, afirmava que “as relações colono-colonizado são relações de massa. Ao número o colono opõe a força.” Daí que, em 1955, já Mário Pinto de Andrade, sob o pseudónimo de Buanga Fele, exprimisse também com alguma ironia, a sua crítica ao conceito de luso-tropicalismo: “Na escrita superficialmente brilhante de G. Freyre pode-se portanto ler que o luso-tropicalismo é simultaneamente um conceito, uma teoria e um método de colonização. Poder-se-ia portanto defini-lo como sendo: Uma vocação congénita dos portugueses em serem atraídos pela mulher de cor nas suas relações; o desinteresse dos portugueses pela exploração económica nos trópicos; a manutenção de relações sociais com os habitantes dos países tropicais com vista à criação da mobilidade vertical na vida social e política.”
Mário Pinto de Andrade denunciava, sobretudo, a ausência de assimilação e integração de valores tropicais na cultura lusitana e concluía que o luso-tropicalismo “não sendo válido para explicar a formação do Brasil, é inteiramente falso para as circunstâncias coloniais da África.” É, pois, na mesma linha de pensamento, que Victor Kajibanga considera ser um grande equívoco falar-se, para o caso angolano, do luso-tropicalismo e da crioulidade (a versão do lusotropicalismo para Angola).
Depois das independências em África nasceu um novo mito: o da lusofonia, que no Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, apresenta os seguintes significados: “1. Qualidade de ser português, de falar português; o que é próprio da língua e cultura portuguesas. 2. Comunidade formada pelos países e povos que têm o português como língua materna ou oficial. Difusão da língua portuguesa no mundo”. Como diria a historiadora angolana Maria da Conceição Neto, “os angolanos (e também os moçambicanos), em primeira instância são bantuófonos. Não lusófonos”. De acordo com Valentin Mudimbe, em “The Invention of Africa – Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge”, “identidade e alteridade são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturadas em diferentes opiniões e expressas ou silenciadas de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.