Quando a voz dos angolanos finalmente soou mais alto
A 29 de Março de 1959, as autoridades coloniais portuguesas, com a famigerada PIDE à cabeça, deram início à detenção de vários indivíduos de várias origens, naturais de Angola e do exterior, sob a acusação de pertencerem a grupos de oposição ao regime e serem defensores da autodeterminação dos angolanos e da independência do país.
O processo de detenção, julgamento e condenação dos 56 elementos, entre os quais uma mulher, acusados de acções oposicionistas ao regime português da época e à colonização de cinco territórios africanos, com destaque para Angola, pela importância que detinha para a estabilidade do sistema então vigente, consitui um marco importante na História do País.
O Processo dos 50 foi de extrema importância para a luta de libertação nacional em Angola. Como refere a historiadora Anabela Cunha, “o envolvimento de pessoas pertencentes a vários estratos sociais também pesou muito a favor da consciencialização dos angolanos para a necessidade de lutarem pela independência”.
Assistia-se, na altura, a uma cada vez maior oposição ao regime colonial, sobretudo, pelas condições de vida a que eram submetidos os angolanos, como se pode constatar nos muitos depoimentos recolhidos e publicados a respeito, incluindo escritos em prosa e verso por eminentes nomes da literatura nacional e não só. Damo-nos conta disso através de uma rápida leitura de Agostinho Neto, que no poema “Contratados” escrevia: “Longa fila de carregadores/domina a estrada/com os passos rápidos//Sobre o dorso/levam pesadas cargas”, ou ainda António Jacinto em “Carta de Um Contratado”: “Eu queria escrever-te uma carta.../Mas ah meu amor, eu não sei compreender/por que é, por que é, por que é, meu bem/que tu não sabes ler/e eu Oh! Desespero - não sei escrever também!” Podemos ainda ler Viriato da Cruz, em “Mamã Negra (canto da esperança)”: Outras gentes... não teus filhos,/que estes nascendo alimárias/semoventes, coisas várias,/mais são filhos da desgraça:/a enxada é o seu brinquedo/trabalho escravo - folguedo...”
O movimento independentista em África e a maior capacitação dos angolanos, obtida através da frequência de instituições de ensino no exterior e também da presença no terreno de missões religiosas, com destaque para as igrejas Católica e Protestante, faziam crescer a consciencialização no seio dos angolanos e também das forças progressistas portuguesas e mundiais para a necessidade da independência de Angola.
Nota desse descontentamento em crescendo eram os panfletos feitos espalhar pelos bairros de Luanda e outras cidades de Angola. O conteúdo desses documentos distribuídos na calada da noite eram mensagens claras para a necessidade de grande mobilização e de um grande levantamento popular contra o poder colonial e ganhou vasta aceitação entre a população, que até criou termos próprios para assinalar a sua presença sem se fazerem perceber pelas autoridades. “Quando em 1959/61 tinha havido distribuição de panfletos de noite, no dia seguinte as pessoas avisavam-se umas às outras:Chuveu! Chuveu!) (Onvula inoka dingi)”, conta José Luandino Vieira em “Papéis da Prisão” (2015, pág. 814).
Em reposta a esse movimento de oposição ao regime salazarista e defensor da independência das então colónias em África, assistiu-se a um recrudescimento da repressão, e os colonialistas passaram a contar com a PIDE, instalada em Angola desde 1957.
As repressão aos movimentos nacionalistas aumentou em todo o território. Qualquer tentativa de oposição era reprimida com a máxima severidade pelas autoridades, sendo que qualquer organização nesse sentido era considerada acto atentatório à segurança doEstado português, como demonstra o facto do julgamento do Processo dos 50 ter decorrido no Tribunal Militar de Luanda.
O facto de o processo que envolvia réus implicados em crimes civis, de cariz intelectual, feitos na forma falada ou escrita em panfletos ou na imprensa, ter sido julgado por instância militar leva a que alguns angolanos actuais, sobretudo profissionais das letras e do jornalismo, considerem-no uma acção militar (talvez a primeira)a ser cometida contra a liberdade de expressão e de imprensa em Angola. A gesta de intelectuais oposicionistas ao regime colonial era então já bem conhecida, com raízes verdadeiramente históricas, como se pode constatar pelo movimento “Voz de Angola Clamando no Deserto”, de 1901, em que onze intelectuais, sob a condição de anonimato devido ao temor por represálias, demonstraram revolta pela opressão a que eram submetidos os fihos da terra.
O recrudescimento da opressão colonial e das acções de repressão levaram ao reforço do sentimento de luta anticolonial. “As prisões de 1959 não puseram fim às acções clandestinas; pelo contrário, continuaram e alastraram-se por outras partes de Angola e no estrangeiro”, afirma a professora universitária Anabela Cunha, que realça também a grande repercussão internacional do processo, ao chamar a atenção para as condições de vida dos angolanos sob o jugo colonial.
Sob um ambiente de forte opressão, os nacionalistas angolanos despertaram para o único caminho que lhes restava, a luta armada anti-colonial, advindo daí actos heróicos, com a revolta de4 de Fevereiro de 1961, que teve como principal objectivo, precisamente, libertar os prisioneiros políticos angolanos encarcerados pelo regime colonial, entre os quais se destavam os integrantes do Processo dos 50.
Francisco Pestana, actual comissário-chefe da Polícia Nacional, então jovem funcionário de um escritório de advogados, recorda o aparato montado à volta do julgamento. “Entre os tribunais nazis de Hitler e aquele da Cidade Alta onde estávamos a diferença era nenhuma”, refere, num texto publicado no Jornal de Angola. Recorda, a propósito, as fardas cinzentas escuras usadas pelos militares e polícias ali destacados, cujas medalhas, espadas e cornetas conferiam ao ambiente uma arrepiante “solenidade metálica”. “Só faltava ali a cruz gamada alemã”, conclui.
No momento em que se assinala mais um aniversário do Processo do 50, compete-nos chamar a atenção para a necessidade de uma maior pesquisa e divulgação deste episódio da luta de libertação nacional. “Há a necessidade de se estudar mais este acontecimento histórico que penso ser importante para a construção de um dos capítulos da História de Angola”, afirma Anabela Cunha.
A professora universitária reconhece haver interesse dos jovens estudantes, em particular os de História do ISCED, em estudarem temas ligados à história política de Angola. Julgamos ser esse um tema que ultrapassa largamente o âmbito do conhecimento histórico propriamente dito, devendo o seu estudo ser alargado a outras áreas do saber.
O impacto que o Processo dos 50 teve na luta de libertação nacional leva-nos a afirmar que a partir daí fez-se ouvir com mais vigor a voz sofrida dos angolanos que durante séculos clamou no deserto.