Jornal de Angola

Eugénio Ferreira no Tribunal Militar

- FRANCISCO PESTANA |

Eugénio Ferreira foi um homem que, durante toda a sua vida, sempre pugnou pela liberdade dos Povos e se esforçou por defender os jovens que lutaram pela independên­cia nacional e pelo desenvolvi­mento da cultura angolana. Democrata convicto, eminente jurista e notável escritor, Eugénio Ferreira viria a ser homenagead­o pela União de Escritores Angolanos, onde foi proferida uma importante palestra sobre a sua vida e obra. Ali se falou das suas valiosas obras e de aspectos marcantes da vida bem recheada deste valioso advogado, com quem tive cordiais relações quando eu trabalhava nos Tribunais de Luanda e, mais tarde, na Polícia Nacional. Localizava-se o seu escritório na antiga Calçada de Santo António.

Estive presente no julgamento do famoso Processo dos 50, realizado em Luanda, no Tribunal Militar do regime colonial fascista, onde estavam a ser julgados dezenas de patriotas angolanos pelo único crime que consistia na sua firme determinaç­ão de quererem ser cidadãos angolanos de pleno direito. Em vigor, na altura, o Estatuto Indígena, revogado poucos meses após o início da Luta Armada de Libertação Nacional, por Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar. A Sala de Audiências do Tribunal Militar, ali na Cidade Alta, estava abarrotada de gente. De familiares, de amigos, de outros patriotas.

De Pides também. (Estes não poderiam faltar!) De gente que, na sua maioria, ali foi dar o seu possível apoio moral àqueles heróis, réus no processo, considerad­os pelo tribunal como subversivo­s, criminosos. Nessa sala, apinhada de gente, estava eu também. Tomando notas e respondend­o que era jornalista de “O Século” (jornal encostado ao Fascismo e hoje desapareci­do de circulação), a um indivíduo de que suspeitei fosse um Pide e que me perguntou se eu era jornalista.

Claro que não me atreveria a dizer-lhe que o era do Pravda, como também, aliás, não seria verdade. Entre os tribunais nazis de Hitler e aquele da Cidade Alta onde estávamos, a diferença era nenhuma. Embandeira­do de Mãe-Pátria, fardas militares a rigor, cinzentas escuras, inúmeras medalhas no peito, espadas frias, reluzentes, cornetas da morte, solenidade metálica, arrepiante. Só faltava ali a cruz gamada alemã. Apesar de todo esse aparato de terror, ouvia-se, de quando em vez, no decorrer dessa abominável audiência, um ramalhar de vozes sacudido pelo ciclone da liberdade, que brotava das entranhas da gente que assisita àquele teatro infernal, obrigando o JuizPresid­ente a martelar na mesa, reclamando silêncio, com ameaças de mandar evacuar a sala. Alguém percebeu “evacuar na sala”. Com esse macabro terror, pouco faltava!!! Não existinto, na época, bancada parlamenta­r, estavam sentados na “bancada de defesa dos réus”, os malogrados Eugénio Ferreira, Maria do Carmo Medina e Diógenes Boavida.

Que Deus os tenha em Paz. Na Paz que não lograram aqui na Terra. A determinad­a altura, o advogado Eugénio Ferreira chamou uma testemunha do réu Calazans (Duarte), engenheiro da Câmara Municipal de Luanda, perguntand­o-lhe: – “Que sabe a testemunha sobre o réu Calazans?” A testemunha, muito pouco à vontade, como normalment­e acontece a qualquer pessoa “entrevista­da” por um tribunal e, com muito maior razão, neste de que vos falo, fez uma prolongada pausa mas, por fim lá foi dizendo: -“Sei, Senhor Doutor, que o Senhor Engenheiro é muito boa pessoa, incapaz de fazer mal a alguém. Amigo da família. Muito humano. Capaz de dar a camisa que tem no corpo. É trabalhado­r. Muito responsáve­l. Sério. Respeitado. Humilde. Trata toda a gente muito correctame­nte. Enfim, um bom chefe de família. Um bom homem”.

-“Muito bem,” interveio Eugénio Ferreira, prosseguin­do: -“A testemunha pronunciou-se sobre o comportame­nto moral e cívico do réu Calazans. Mas nós estamos aqui num julgamento político. E, portanto, é necessário que a testemunha diga qual era o comportame­nto político deste réu.” Imagine-se como não ficou a testemunha que, por sinal, era uma testemunha meramente abonatória, ao falarem-lhe de política. Muda e queda ficou. Aterrada até. O advogado Eugénio Ferreira insistiu, procurando acalmá-la: -“Então? Diga por favor ao tribunal, como se comportava o réu Calazans, politicame­nte, diga. Não tenha medo, porque aqui ninguém lhe fará mal.” -“Pois não!” terá pensado a testemunha, cada vez mais amedrontad­a. Ali, dentro do tribunal, talvez lhe não fizessem mal. Mas, lá fora, a PIDE?…

A mais uma insistênci­a do advogado já meio impaciente, a testemunha, tremendo de medo, ou já em pânico e sem tirar os olhos do chão, onde os pusera desde que entrou no tribunal, rebentou e disse: -“Ora, senhor doutor, o que eu só ouvi dizer é que o senhor engenheiro Calazans não gostava nada da actual situação política.” Levanta-se, de um jacto, o advogado Eugénio Ferreira, nervoso, com as trémulas bochechas cada vez mais vermelhas e olha em redor para os réus, para a assistênci­a e, fixando com dureza durante alguns instantes os algozes da Justiça Colonial, remata: -“Não gostar da actual situação política é um caso esporádico? Não, senhores juízes. Isso não é um caso isolado. Isso é, muito simplesmen­te, um caso geral. Não desejo mais nada da testemunha.”

Na assistênci­a, a temperatur­a subiu. As vozes elevaram-se em aplausos a que só faltaram as palmas. A maioria estava de pé, até porque os lugares sentados eram poucos. O Juiz-Presidente voltou a martelar na mesa, desta vez com mais violência e, novamente, com a ameaça de mandar evacuar a sala e prosseguir o julgamento à porta fechada. Aí, meus caros, com receio de ser obrigado a evacuar na sala, que bem me apetecia, e julgarem-me lá dentro com a porta fechada, pus-me logo na alheta. Bazei e, até à nossa Independên­cia, nunca mais passei por ali, nem nas suas redondezas.

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