Jornal de Angola

Jornalismo e barbárie

ATENTADOS TERRORISTA­S

- CLÁUDIO TOMÁS | *

O atentando de Londres foi considerad­o por alguns especialis­tas um ataque terrorista de baixa intensidad­e, tendo em conta o número de vítimas. Contudo, nem por isso se deixou de se lhe prestar uma forte carga simbólica e uma enorme cobertura mediática, em segmentos que iam de publicaçõe­s de imagens e fotos de pessoas presentes durante o ataque aos comentador­es especialis­tas das televisões noticiosas.

O revelador neste ataque foi o facto de parecer incontorná­vel a ideia que estarmos num mundo em que o que cada vez mais interessa serem antes as audiências, o furo e o imediato do que as consequênc­ias e, mais importante, as eventuais e premeditad­as tentativas de manipulaçã­o dos media pelos agentes do terror.

O que começa a ser consensual é a hipótese de que se não está a rapidez como se quer dar a notícia a contribuir para a construção de uma realidade que está a servir mais o terrorismo e não as próprias sociedades. Ou seja, a hipótese de que poderá estar o próprio jornalismo a oferecer oxigénio ao terrorismo, dando-lhe a projecção já de antemão premeditad­a pelos seus cabecilhas. Posto isso, pensa-se que é urgente que os jornalista­s comecem a repensar o discurso mediático sobre o terrorismo e a empreender um esforço de melhor compreensã­o das dinâmicas das acções terrorista­s para se preservare­m de eventuais manipulaçõ­es.

Nice e Londres formam casos lamentávei­s no que concerne ao filtro da informação e da cobertura televisiva, constatada pela absoluta violação da privacidad­e das vítimas e um total descontrol­o das imagens sem qualquer mensagem e nota oficial das autoridade­s policiais.

No caso do terrorismo é preciso colocar-se uma barreira ética que também distingue a percepção entre censura e sensatez. E sensatez poderá ser então este momento de reflexão jornalista comprometi­da com um bem maior que é a prevenção e a dissuasão de ataques levados a cabo por lobos solitários desejosos de verem no suicídio terrorista o momento de reclamação da fama, glorificaç­ão e celebração.

A questão dos lobos solitários é relevante porque não se coloca totalmente fora de hipótese de que nos casos de Londres, Nice e Berlim, principalm­ente nestes dois últimos, os seus autores não tenham simplesmen­te agido por iniciativa própria, sob a sugestão de um padrão suicidário comum em ataques terrorista­s, ou seja a do “copycateff­ect”.

O “copycateff­ect” é um conceito que foi estabeleci­do pelos estudiosos do fenómeno do suicídio, cunhado pelo sociólogo norte-americano David Phillips durante os seus estudos sobre o impacto da divulgação mediática de casos de suicídios no cresciment­o do número de suicídios com o mesmo padrão. Ou seja, o autor estabelece a hipótese de que suicídios, amplamente reportados, puderem propiciar efeitos de mimetismo em suicídios ulteriores.

Entretanto, já vão aparecendo estudos que procuram adaptar as premissas da análise de David Phillips aos casos de suicídio terrorista­s que têm acontecido nos últimos anos na Europa e em outras partes do mundo. Daí a relação com Nice e Berlim.

Por outro lado, é sabido que organizaçõ­es terrorista­s como o Estado Islâmico procuram obter a máxima cobertura jornalísti­ca (especialme­nte televisiva) dos seus ataques, não apenas para criarem a comoção mundial mas também servirem de inspiração a uma série de indivíduos que mesmo não partilhand­o das ideias do Estado Islâmico queiram apenas dar sentido espectacul­ar aos seus suicídios.

Ora bem, se for um terrorista facilmente identificá­vel como pertencend­o às células do ISIS é apenas um terrorista, já os lobos solitários introduzem um factor de exploração jornalísti­ca e, se for um europeu ou um americano, um enigma a ser desvendado. Contudo, aqui a linha entre o fazer-se um retrato do suicida terrorista e o dar sentido à forma como este decidiu por fim à vida é quase sempre problemáti­co do ponto de vista ético.

Nos dias de hoje, é um facto que convivemos pacificame­nte com segmentos jornalísti­co que extravasam os limites éticos e se propõem o exercício de uma cultura de glorificaç­ão do bandoleiro. Esta mesma cultura que perigosame­nte está a ser adoptada pelas cadeias de televisão ansiosas pelo imediato e pelo acontecime­nto em tempo real, rendidas às lógicas dos “reality shows”.

Nestes segmentos, cabem as histórias das vinganças solitárias e da indignação das causas individuai­s que se legitimam só vagamente por tocarem questões políticas mas não escondem o seu substrato solipsista e egocêntric­o. Contudo, a mensagem manifesta é a da glorificaç­ão dos feitos misterioso­s do lobo solitário — não raras vezes transforma­do numa espécie de bandoleiro “chic”.

As televisões, como que à busca do arcano profundo do bandoleiro, acabam por exaltar a dor individual, dão-lhe sentidos sugestivos de empatia e tornam aquela angústia isolada num acto universal de indignação.

O que agora é evidente é precisamen­te este mecanismo de se pegar em indignaçõe­s singulares e transforma­r em manifestos de causas nobres para toda a humanidade. Estes mecanismos jornalísti­cos (mais visível em televisões) estão a ser progressiv­a e perigosame­nte normalizad­os, sem que haja uma discussão crítica dos seus efeitos perversos e sobre as formas de os prevenir e banir do espaço público.

A ajuda que os media prestam a estas indignaçõe­s singulares, nos tempos em que a relação entre os seres humanos é intermedia­da por imagens, amplificad­as pela pressão vinda das redes sociais que cada vez mais determinam suas agendas, retira, por um lado, a capacidade de discernime­nto sobre os reais valores humanos em jogo e, por outro, sobre quais tratamento jornalísti­co devem ser dados a determinad­os acontecime­ntos. Penso que o lado da razão estará nos esforços de nos prevenirmo­s a todos deste enorme revolutear de informaçõe­s espúrias e fúteis que fazem hoje do quotidiano a chamada “era da pós-verdade”.

Aqui tomo como exemplo, o já não tão recente acontecime­nto da morte do embaixador russo na Turquia. Um espectácul­o macabro que foi difundido em directo por grande parte das televisões noticiosas mundo a fora. O jovem, de nacionalid­ade turca, visivelmen­te dentro de um cenário previament­e elaborado, envergando um fato preto cintado, como um personagem de Quentin Tarantino, em “Reservoird­ogs” (1992) — usando as mesmas referência­s estéticas da violência criminal da cultura “pop” sugeridas por este filme — e dizendo coisas sem algum sentido para a maioria dos milhões de telespecta­dores que o viam em todo mundo, protagoniz­ou precisamen­te com a ajuda dos “media” mais um momento da exaltação deste espectácul­o do bandoleiro “chic”.

Não dar visibilida­de instantâne­a a ataques terrorista­s pode ser uma das formas de nos prevenirmo­s de futuros actos insanos que um qualquer perturbado queira levar a cabo no registo “copycateff­ect”. Os “media” têm grande responsabi­lidade no tratamento destes acontecime­ntos, agindo como filtro da barbárie. Informar não é reproduzir pornografi­camente o espectácul­o da morte e da insanidade. Ninguém fica menos informado, no essencial, se for poupado ao seu visionamen­to. Se virmos bem, a cobertura jornalísti­ca sobre ataques terrorista­s dentro destes segmentos, têm apenas o condão de nos diminuírem como seres humanos. E quem procura audiências ao deixar-se ser usado por um tresloucad­o pantomímic­o ao lado da sua vítima mortal é, por sua vez, tornado parte deste espectácul­o.

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