Jornalismo e barbárie
ATENTADOS TERRORISTAS
O atentando de Londres foi considerado por alguns especialistas um ataque terrorista de baixa intensidade, tendo em conta o número de vítimas. Contudo, nem por isso se deixou de se lhe prestar uma forte carga simbólica e uma enorme cobertura mediática, em segmentos que iam de publicações de imagens e fotos de pessoas presentes durante o ataque aos comentadores especialistas das televisões noticiosas.
O revelador neste ataque foi o facto de parecer incontornável a ideia que estarmos num mundo em que o que cada vez mais interessa serem antes as audiências, o furo e o imediato do que as consequências e, mais importante, as eventuais e premeditadas tentativas de manipulação dos media pelos agentes do terror.
O que começa a ser consensual é a hipótese de que se não está a rapidez como se quer dar a notícia a contribuir para a construção de uma realidade que está a servir mais o terrorismo e não as próprias sociedades. Ou seja, a hipótese de que poderá estar o próprio jornalismo a oferecer oxigénio ao terrorismo, dando-lhe a projecção já de antemão premeditada pelos seus cabecilhas. Posto isso, pensa-se que é urgente que os jornalistas comecem a repensar o discurso mediático sobre o terrorismo e a empreender um esforço de melhor compreensão das dinâmicas das acções terroristas para se preservarem de eventuais manipulações.
Nice e Londres formam casos lamentáveis no que concerne ao filtro da informação e da cobertura televisiva, constatada pela absoluta violação da privacidade das vítimas e um total descontrolo das imagens sem qualquer mensagem e nota oficial das autoridades policiais.
No caso do terrorismo é preciso colocar-se uma barreira ética que também distingue a percepção entre censura e sensatez. E sensatez poderá ser então este momento de reflexão jornalista comprometida com um bem maior que é a prevenção e a dissuasão de ataques levados a cabo por lobos solitários desejosos de verem no suicídio terrorista o momento de reclamação da fama, glorificação e celebração.
A questão dos lobos solitários é relevante porque não se coloca totalmente fora de hipótese de que nos casos de Londres, Nice e Berlim, principalmente nestes dois últimos, os seus autores não tenham simplesmente agido por iniciativa própria, sob a sugestão de um padrão suicidário comum em ataques terroristas, ou seja a do “copycateffect”.
O “copycateffect” é um conceito que foi estabelecido pelos estudiosos do fenómeno do suicídio, cunhado pelo sociólogo norte-americano David Phillips durante os seus estudos sobre o impacto da divulgação mediática de casos de suicídios no crescimento do número de suicídios com o mesmo padrão. Ou seja, o autor estabelece a hipótese de que suicídios, amplamente reportados, puderem propiciar efeitos de mimetismo em suicídios ulteriores.
Entretanto, já vão aparecendo estudos que procuram adaptar as premissas da análise de David Phillips aos casos de suicídio terroristas que têm acontecido nos últimos anos na Europa e em outras partes do mundo. Daí a relação com Nice e Berlim.
Por outro lado, é sabido que organizações terroristas como o Estado Islâmico procuram obter a máxima cobertura jornalística (especialmente televisiva) dos seus ataques, não apenas para criarem a comoção mundial mas também servirem de inspiração a uma série de indivíduos que mesmo não partilhando das ideias do Estado Islâmico queiram apenas dar sentido espectacular aos seus suicídios.
Ora bem, se for um terrorista facilmente identificável como pertencendo às células do ISIS é apenas um terrorista, já os lobos solitários introduzem um factor de exploração jornalística e, se for um europeu ou um americano, um enigma a ser desvendado. Contudo, aqui a linha entre o fazer-se um retrato do suicida terrorista e o dar sentido à forma como este decidiu por fim à vida é quase sempre problemático do ponto de vista ético.
Nos dias de hoje, é um facto que convivemos pacificamente com segmentos jornalístico que extravasam os limites éticos e se propõem o exercício de uma cultura de glorificação do bandoleiro. Esta mesma cultura que perigosamente está a ser adoptada pelas cadeias de televisão ansiosas pelo imediato e pelo acontecimento em tempo real, rendidas às lógicas dos “reality shows”.
Nestes segmentos, cabem as histórias das vinganças solitárias e da indignação das causas individuais que se legitimam só vagamente por tocarem questões políticas mas não escondem o seu substrato solipsista e egocêntrico. Contudo, a mensagem manifesta é a da glorificação dos feitos misteriosos do lobo solitário — não raras vezes transformado numa espécie de bandoleiro “chic”.
As televisões, como que à busca do arcano profundo do bandoleiro, acabam por exaltar a dor individual, dão-lhe sentidos sugestivos de empatia e tornam aquela angústia isolada num acto universal de indignação.
O que agora é evidente é precisamente este mecanismo de se pegar em indignações singulares e transformar em manifestos de causas nobres para toda a humanidade. Estes mecanismos jornalísticos (mais visível em televisões) estão a ser progressiva e perigosamente normalizados, sem que haja uma discussão crítica dos seus efeitos perversos e sobre as formas de os prevenir e banir do espaço público.
A ajuda que os media prestam a estas indignações singulares, nos tempos em que a relação entre os seres humanos é intermediada por imagens, amplificadas pela pressão vinda das redes sociais que cada vez mais determinam suas agendas, retira, por um lado, a capacidade de discernimento sobre os reais valores humanos em jogo e, por outro, sobre quais tratamento jornalístico devem ser dados a determinados acontecimentos. Penso que o lado da razão estará nos esforços de nos prevenirmos a todos deste enorme revolutear de informações espúrias e fúteis que fazem hoje do quotidiano a chamada “era da pós-verdade”.
Aqui tomo como exemplo, o já não tão recente acontecimento da morte do embaixador russo na Turquia. Um espectáculo macabro que foi difundido em directo por grande parte das televisões noticiosas mundo a fora. O jovem, de nacionalidade turca, visivelmente dentro de um cenário previamente elaborado, envergando um fato preto cintado, como um personagem de Quentin Tarantino, em “Reservoirdogs” (1992) — usando as mesmas referências estéticas da violência criminal da cultura “pop” sugeridas por este filme — e dizendo coisas sem algum sentido para a maioria dos milhões de telespectadores que o viam em todo mundo, protagonizou precisamente com a ajuda dos “media” mais um momento da exaltação deste espectáculo do bandoleiro “chic”.
Não dar visibilidade instantânea a ataques terroristas pode ser uma das formas de nos prevenirmos de futuros actos insanos que um qualquer perturbado queira levar a cabo no registo “copycateffect”. Os “media” têm grande responsabilidade no tratamento destes acontecimentos, agindo como filtro da barbárie. Informar não é reproduzir pornograficamente o espectáculo da morte e da insanidade. Ninguém fica menos informado, no essencial, se for poupado ao seu visionamento. Se virmos bem, a cobertura jornalística sobre ataques terroristas dentro destes segmentos, têm apenas o condão de nos diminuírem como seres humanos. E quem procura audiências ao deixar-se ser usado por um tresloucado pantomímico ao lado da sua vítima mortal é, por sua vez, tornado parte deste espectáculo.