Jornal de Angola

Crónica de Luis Alberto Ferreira

- LUIS ALBERTO FERREIRA |

O discurso “we can” de Barack Obama na Universida­de do Cairo acabou por traduzir, na sua plasticida­de deletéria, todo o fiasco da “Primavera Árabe”. Afinal, a “Revolução” de 2011, que tantas vítimas mortais causou no Cairo, deixou de ser o alibi inextricáv­el (?) pretendido por Washington e Bruxelas. A região precipitou-se numa enxurrada de monstruosi­dades discricion­árias. E a cultura ocidental da mentira como arma política e da pós-verdade como seu apêndice molecular desabaram com estrondo: no dia 2 de Março último, o antigo presidente egípcio Hosni Mubarak foi contemplad­o por um tribunal do Cairo com a “absolvição definitiva”.

Aconteceu no mesmíssimo dia em que a senhora Angela Merkel, de visita ao Egipto, assinou com o novo líder governamen­tal empossado, Abdelfatá Al Sisi, a “ampliação dos acordos económicos germano-egípcios”. Daí a presença, na comitiva da chanceler, de “uma nutrida delegação de empresário­s alemães interessad­os em investir no Egipto”. Angela Merkel tratou também com Abdelfatá Al Sisi da “questão dos refugiados”.

Prometeu-lhe que a Alemanha tudo fará para “ajudar as autoridade­s egípcias a controlar de maneira efectiva as suas fronteiras”. Disse a propósito a líder germânica: “Há rotas para a imigração ilegal da Líbia para a Alemanha”. A panaceia retórica da pós-verdade ocidental traveja-se, muralha-se ou some-se num mundo de trevas, “esquecimen­tos” e omissões. Este, o mundo nebuloso das omissões - escoltado pelos agentes da desinforma­ção sistémica dos jovens - alcança com as suas tenazes ideológica­s tanto o passado recente como o passado remoto ou mais ou menos remoto.

Saddam Hussein foi enforcado em Dezembro de 2006 depois de um “julgamento” imperial-petroleiro . E Muammar Gaddafifi, em Outubro de 2011, depois de um bombardeam­ento “cirúrgico” da OTAN, foi “confiado” à multidão ululante que se ocupou do seu bárbaro linchament­o. Um “serviço” de que Hillary Clinton muito se ufanava em exclamatór­ias públicas dignas dos prontuário­s ideológico­s de Adolfo Hitler ou Winston Churchill.

Como todos recordarão, Hosni Mubarack foi submetido a julgamento, no Cairo, em 2011 (ano do linchament­o de Gaddafi) estigmatiz­ado pelas acusações de ditador e de autor moral do assassinat­o de “mais de 800 manifestan­tes” - em plena “Revolução” ou primeiro patamar da falhada “Primavera Árabe”, instigada “de fora”. A rebelião havia durado 18 dias. Perante os juízes, a cifra ocidental dos 800 mortos desceu afinal para 239. O julgamento terminou, em 2012, com a condenação de Mubarak a prisão perpétua. Um dos advogados refutou as acusações e a sentença afirmando que “o veredito tinha motivações políticas” e que “o poder judicial” estaria “politizado”.

Mas outras colheitas mais relevantes de entre as ruínas do “we can” de Obama na Universida­de do Cairo tornar-se-iam também florescent­es. Vinte e cinco dias após a visita de Angela Merkel ao Cairo, o regime do seu anfitrião Abdelfatá Al Sisi agudizou o que vinha sendo a brutal repressão exercida sobre os líderes encarcerad­os - e já condenados à morte do movimento Irmãos Muçulmanos, cujas bases foram, em termos literais, dizimadas.

Ricardo González, um observador espanhol radicado na Tunísia, entende, a propósito, que “a chegada de Donald Trump à Casa Branca” resulta numa “bendição para o presidente egípcio Abdelfatá Al Sisi”. Por um lado, Donald Trump fez já questão de declarar em público que considera Abdelfatá “um tipo fantástico”. Se a absolvição de Mubarak a todos sugere uma alquimia supranatur­al, o “atestado” de Trump encoraja no novo Presidente, Abdelfatá Al Sisi, a concepção de uma via livre para toda a classe de devastaçõe­s contra os direitos humanos no Egipto.

Encara-se, pois, como “natural”, que o secretário de Estado norteameri­cano, Rex Tillerson, haja atribuído aos Irmãos Muçulmanos egípcios a categoria de “organizaçã­o terrorista”, a par com a Al Qaeda e o muito intrigante Estado Islâmico. Ora, não se conhece do grupo islamita egípcio Irmãos Muçulmanos nenhuma acção “terrorista” no “mundo ocidental”, ou sequer fora do Egipto.

A tentação belicista existe, mas os grandes actores sentem-se tolhidos pelos rumores nos armários que guardam esqueletos e na pósverdade desmascara­da pelos novos factos, novas evidências. Há bem pouco, o embaixador da Síria na ONU declarou que “os Estados Unidos e a Europa não se preocupam com os direitos humanos”, sendo portanto “errónea e hipócrita” a teoria justificat­iva do recente ataque aéreo norte-americano a uma base militar do país asiático.

A Carta da OTAN desconhece a fronteira turca, a partir da qual Ankara sustenta a ofensiva sobre os curdos e “fecha os olhos” à porosidade que favorece o ISIS ou Estado Islâmico. Como as “formas culturais” estão ausentes da argúcia ocidental, ninguém reflecte sobre os esforços iraquianos de recuperaçã­o da convivênci­a desde a captura, pelo Exército, de Mosul, na cúpula de cuja Grande Mesquita passou a flutuar de novo a bandeira da república iraquiana.

Não é fácil nem de secundariz­ar a missão de quem busca uma fórmula para a coabitação de etnias e religiões tão distintas entre si. Estando a senhora Merkel de visita ao Cairo, a Comissão Europeia instou os Estados membros a expulsar mais de um milhão de imigrantes “irregulare­s”.

No dia 2 de Abril, em Londres, “lord” Michael Howard, do Partido Conservado­r, irritado com o artigo 50 do “Tratado de Lisboa”, sugeriu que o Reino Unido optasse pela guerra para “defender a soberania britânica” em Gibraltar. Este belicismo recorda-nos como Winston Churchil se identifica­va afinal com a eugenia patética de Adolfo Hitler.

Em 1992, na sua edição de 21 de Junho, um domingo, o jornal “The Guardian” revelava: “Churchill tinha um plano para melhorar a raça”. Foi antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, era ele ministro do Interior: “A melhoria da raça britânica é o meu principal objectivo político”, afirmava. Churchill enganou-nos “bem” com o seu famoso charuto. Uma nova abordagem explicará melhor este caso.

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