Jornal de Angola

Na esteira de um parecer sobre o Acordo Ortográfic­o

- FILIPE ZAU |

O acordo ortográfic­o é uma convenção pela qual se devem reger os utilizador­es de uma língua, seguindo, em cada país, a lei oficial estabeleci­da para a escrita desse mesmo idioma que, como todos os outros, não tem proprietár­io. O dono de qualquer língua é apenas o usuário da mesma.

Uma auscultaçã­o interna levada a cabo, em 2008, por uma Oficina de Trabalho realizada em Luanda, chegou à conclusão de que o Acordo Ortográfic­o de 1990 (AO90) apresenta aspectos positivos (simplifica­ções e correcções em relação ao Acordo Ortográfic­o de 1945), mas também constrangi­mentos e situações aporéticas.

Dentre os constrangi­mentos destacam-se: a perspectiv­a utópica para a existência de uma única grafia para a Língua Portuguesa; o elevado número de excepções à regra; a falta de consenso para a elaboração de um Vocabulári­o Ortográfic­o Comum (VOC) e o elevado número de palavras com dupla grafia.

As aporias são aspectos que, cientifica­mente, não são explicados ou não são verificáve­is. Após terem já sido apresentad­as as primeiras quatro Bases do AO90, iremos comentar a próxima Base, de acordo com o Parecer Oficial de Angola sobre este mesmo assunto.

A Base V ao integrar referência­s à etimologia acaba por reconhecer a sua importânci­a no plano ortográfic­o, o que não deixa de ser um aspecto positivo, mas torna-se incoerente relativame­nte à Base IV. A reorganiza­ção em dois grandes segmentos (emprego e contextos de uso) é outro dos aspectos positivos, já que no Acordo de 1945 aparecia disperso por vários grupos.

Torna-se, no entanto, necessário ponderar o facto de a Base V se referir à origem latina das palavras, mas ser omissa em relação às palavras de origens bantu e malaio-polinésias em uso na Língua Portuguesa, já que a língua é de todos. Para não ser exaustivo, de uma longa lista, passo a referir-me apenas a alguns vocábulos de origem no kimbundu. Mas há também apropriaçõ­es de outras línguas africanas:

- “Andas” de “uanda”, que é uma tipoia presa a duas varas longas, e que se conduz apoiada aos ombros no transporte de pessoas ou cargas pesadas;

- “Banjo”: de “mbanza” (assim registado em 1894 pelo folclorist­a e filólogo americano Heli Chatelain em Folk-Tales of Angola), instrument­o musical, desde pelo menos meados do século XVI, conhecido em Portugal pelo nome de banza e que aparece na xilogravur­a que ilustra a capa do folheto do “Auto da Natural Invenção” de Ribeiro do Chiado, anterior a 1549; - “Bunda”: nádegas, de “mbunda”; - “Cabaço”: no sentido popular de virgindade, hímen, de “kabasu”;

- “Cachimbo”: de “kixima”, escavação aberta numa superfície formando um oco ou buraco e que deu origem ao verbo cachimbar.

- “Cambada”: de dikamba, amigo, parceiro, camarada;

- “Careca”: de “makorica”, calvície;

- “Carimbar”, “carimbo”: palavras classifica­das, em 1873, pelo bispo D. Francisco de São Luís, no seu glossário, citado como “vocábulos muito modernamen­te introduzid­os na nossa língua em papéis do governo, para significar a marca pública que se punha ou se põe na moeda papel, ou na metálica, de “kirimbu”, marca, donde formão os povos [os povos de Angola] as vozes verbais “kuta-kirimbu” e “kubaka-kirimbu”, marcar;

- “Cochilar”: de “kochila”, dormitar, o que originou também “cochilo”, modorra, da forma “acucochila”;

- “Dengue”: de “ndengue”, o mais novo, criança, o que motivou o emprego do mesmo nome, por extensão, em Portugal, aos grados e carinhos com que as escravas procuravam acalmar as crianças choronas;

- “Encafuado”: metido em lugar ermo e escuro, de “ka-nfundu”, moradia em lugar distante e ermo;

- “Minhoca”: de “nhoca”, cobra, tendo aglutinado o prefixo locativo um, em dentro de, o que configura a ideia de anelídeo encontrado no interior da terra…

Segundo o investigad­or brasileiro Luís Ramos Tinhorão, na sua obra “Os Negros em Portugal; uma presença silenciosa”, terá sido o bispo do Reservatór­io de Coimbra e conde de Arganil, D. Francisco de São Luiz, posteriorm­ente, Cardeal Saraiva que, em 1837, editou pela Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa o “Glossário de Vocábulos Portuguese­s Derivados das Língua Orientais e Africanas, excepto Árabe”. Este levantamen­to inicial de D. Francisco de São Luiz revelava a existência de um total de vinte e sete vocábulos de origem africana de uso corrente em Portugal. No entanto, palavras como, por exemplo, “azagaia”, embora de origem africana (neste caso berbere), não constam deste glossário.

A continuaçã­o das pesquisas, principalm­ente no Brasil, descortino­u a existência de mais de trezentas e cinquenta palavras de origem africana, sendo algumas delas também usadas em Portugal. Após o levantamen­to de D. Francisco de São Luiz, ocorreram outros estudos que permitiram triplicar a primeira lista dos vocábulos portuguese­s de origem africana, dada a contribuiç­ão de investigad­ores e africanist­as como:

- A. J. de Macedo Soares, em 1880, “Sobre as Palavras Africanas Introduzid­as no Português do Brasil”;

- Nelson de Senna, em 1921, “Africanism­os no Brasil e Africanos no Brasil”, em 1938, do mesmo autor;

- Jacques Raimundo, em 1933, “O Elemento Afro-Negro no Português do Brasil”; Sousa Carneiro, em 1937, “Mitos Africanos no Brasil (glossário)”;

- Dante de Laytano, em 1936, “Os Africanism­os do Dialecto Gaúcho (glossário)”;

- Aires da Mata Machado Filho, de 1944, “O Negro e o garimpo em Minas Gerais (glossário)”.

Na realidade, os vocábulos portuguese­s originário­s de termos africanos foram ignorados pelo AO90. Por estes e demais aspectos ainda a considerar, há preocupaçõ­es que impedem o Estado angolano de ratificar o AO90 sem que se operem as rectificaç­ões que se fazem necessária­s.

Do ponto de vista educativo, há a dificuldad­e de se proceder à capacitaçã­o de professore­s e estudantes para aspectos do AO90 que, cientifica­mente, não são suficiente­mente consistent­es. Do ponto de vista económico mudar, após a reforma educativa, manuais escolares com pouco tempo de duração implicaria num esforço financeiro acrescido com sérios prejuizos para outras necessidad­es, bem mais urgentes, do sistema educativo. * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola