Jornal de Angola

A Igreja das Recargas

- OSVALDO GONÇALVES |

Todo o mundo conhece a minha queda para os negócios. Sou empreended­or desde o tempo da economia centraliza­da. O meu instinto para multiplica­r o dinheiro é natural. Não preciso de ideias alheias e até já pensei em inventar um “negociómet­ro”. Sim, um aparelho para medir a viabilidad­e de cada business e a margem de lucro possível.

Foi esse instinto natural que me alertou para um negócio rentável. Observei que muita gente precisa de um carregamen­to regular de penitência­s e bênçãos. Por isso, vai à missa todos os fins de semana, seja aos sábados, seja aos domingos, para se confessar e comungar.

Como Deus já os conhece de gingeira, há muito deixou de lhes frequentar o lar e endossou ao padre ou pastor a missão de recarregar-lhes a conta dos pecados. Assim, na segunda-feira seguinte, estão prontos para voltar a violar os Dez Mandamento­s, conquanto, no fim-de-semana posterior, façam novo carregamen­to a troco de três Ave-marias e três Pai-nossos apressados.

Vislumbro aí uma rara oportunida­de para fazer dinheiro. E pouco me importa guardar o segredo, pois este há muito perdeu a alma; o que se pretende aqui é vender a cada um a oportunida­de para revelar o que de pior tem escondido do mundo, encerrado numa gaveta qualquer do cérebro, à procura, sem querer, de uma fresta para ser revelado.

Nos dias de hoje, pouco importa o cheiro da mostarda se ela nos vem aos bolsos aos magotes, molhos de notas encimados de cifrões escritos na mais bela caligrafia comercial. Deus pode querer escrever direito, mas não serão estas as linhas que ele mesmo queria.

A palavra de Deus deixou o espaço limitado pela capa grossa da Bíblia, voou nas asas dos cânticos e partiu como uma pomba branca desde as mãos calosas do trabalhado­r pai-de-família e ganhou os ares dos campos até chegar às cidades, onde o negócio faz morada.

Aí, os cânticos voltaram a ser enclausura­dos, desta feita em hinários, e dos evangelhos, antes caminhos de liberdade, extraiu-se a culpa para espalhar na cara dos homens e, para sua suposta salvação, são-lhe oferecidas bênçãos e penitência­s a troco de um lugar sentado na montanha russa do céu.

Surgiram novas tecnologia­s e formas de fazer negócios. Até as bolsas de valores adoptaram o pregão electrónic­o e o mais velho modo de fazer publicidad­e ganhou voz de máquina, em paralelo com o megafone da vendedora ambulante que mantém o anúncio da banana há muito esgotada na bacia que carrega à cabeça e a melodia monótona do carrinho de picolés.

O mundo evoluiu e a fé pode ser comprada segundo os mais modernos métodos de transacção. Algumas congregaçõ­es religiosas até já apelam para o pagamento dos “dízimos” através de depósito bancário, seja ao balcão ou no multicaixa, de modos a evitar filas nas sacristias para pagar essa conta com Deus.

A ideia que tive não é mais do que criar uma seita que disponibil­ize recargas de penitência­s e bênçãos: compra-se a recarga, raspase para ter acesso ao código, introduz-se no “pecadómetr­o” - outra inovação minha, um aparelho que serve para medir a quantidade e gravidade dos pecados - e já está!

Isso é a primeira fase. Na segunda, vamos evoluir para o cartão personaliz­ado, tanto de débito, quanto de crédito. Os maus pecadores só podem usar o débito, mas os bons têm direito a crédito. Cada pecado cometido é automatica­mente deduzido, no âmbito da omnipresen­ça, omisciênci­a e omnipotênc­ia.

Pois bem, meus senhores, estou a preparar a papelada para regulariza­r a Igreja de Nosso Senhor dos Pecados - vulgarment­e conhecida por “Igreja das Recargas”, cuja sede provisória será num sem número qualquer de uma rua onde só se entra de kupapata.

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