Anarquia prossegue na Somália
As afirmações de altos funcionários dos EUA, incluindo o secretário de Defesa, James Matis, feitas nos últimos dias, de que a seca e a fome estão a impulsionar o ressurgimento da pirataria na costa da Somália podem ser consideradas “o mais do mesmo”, apesar da situação de verdadeira catástrofe que assola aquele país há já longos anos e que tende a agravar-se diante dos olhos de todo o mundo, com os detentores do poder de olhos fixos nos seus umbigos, mais preocupados com os reflexos que mais um atentado terrorista numa metrópole pode ter no xadrez político dos seus países.
A actuação das potências na região do Corno de África teve sempre como principal mote a salvaguarda dos seus interesses, devido à localização daqueles países em relação às rotas do petróleo e gás, e nunca, a bem dizer, a estabilização dos territórios, onde há muito grassa a anormalidade em termos de organização política e social.
A Somália é, desde 1991, citada como exemplo real de uma sociedade sem Estado nem sistema jurídico. Ou seja, desde a queda de Siad Barre, foi-se instalando naquele país, com extensas áreas dominadas pelos senhores da guerra, um verdadeiro estado de anarquia, que agora serve até de matéria de estudo para cientistas políticos e economistas de renomadas universidades pelo Mundo.
O Governo Federal da Transição, criado em 2006, reconhecido internacionalmente e que reivindica a titularidade do terriório, é, na verdade, um rabisco do que poderia ser uma verdadeira entidade governativa do país, lutando ainda pelo controlo de Mogadíscio, a capital, apesar das várias intervenções estrangeiras, incluindo a norte-americana, abalada e quase tocada de morte pelos trágicos acontecimentos que se seguiram à incursão de 2001, e a invasão de grande envergadura das tropas etíopes em Junho de 2006.
Seguindo-se a história da Somália no último quarto de século, facilmente se constata um crescente deixa-andar das potências e instituições mundiais, com destaque para as Nações Unidas em relação à situação no terreno, com a sua acção tornada refém pela constante falta de disponibilidade em homens e meios. No plano regional, pode-se falar num descrédito total da União Africana, com muitos dos seus membros influentes a mostrarem-se incapazes de tomar qualquer iniciativa porque tocados no íntimo por quezílias internas.
O que se vem assistindo ao longo dos últimos anos é a procura do asseguramento das rotas de navegação, mais por força do escoamento do petróleo, mas também das ligações comerciais entre os hemisférios ocidental e oriental e não a um interesse claro e legítimo de estabilizar os países e a região e conferir aos seus habitantes o estatuto de seres humanos.
Votadas ao total abandono – vejamos que a ausência de um Estado devidamente reconhecido dificulta, se não mesmo impede, a actividade normal dos cidadãos, desde o acesso a um sistema de ensino reconhecido e de saúde fiável, à impossibilidade de se instituírem empresas – as populações tornaram-se presa fácil de organizações com tendências radicalistas, até ao estabelecimento de uma espécie de regime totalitarista por grupos extremistas, como são hoje os radicais da AlShabbab, organização que detém o muito apelativo nome em árabe de Harakat al-Shabab al-Mujahideen, ou seja, “Movimento do Jovem Guerreiro”.
Com ligações imputadas ora à Al-Qaeda ora ao autoproclamado Estado Islâmico, esta organização faz-se imperar por um intrincado sistema jurídico-social com interpretações deturpadas do Corão para ditar ordens no vasto território que ocupa e até exportar instabilidade aos países vizinhos da Somália através do terror e da violência extrema.
O Secretário-Geral das Nações Unidas, o português António Guterres, que visitou o país em finais de Março, escreveu na sua conta no Twiter: “As pessoas estão a morrer. O mundo tem de acabar com isto agora”. Mas a situação de caos e anarquia deve continuar, a ter em conta as últimas abordagens sobre a questão, mesmo diante do recrudescimento das acções de pirataria nos mares da região.
O secretário da Defesa dos EUA disse a jornalistas no Djibuti, país estratégico no Corno de África, que abriga a única base militar permanente dos EUA no continente africano, a Camp Lemonnier, que mesmo que o problema da pirataria se venha a agravar, não espera um envolvimento significativo dos militares norte-americanos.
Nas últimas semanas, registaram-se seis ataques de piratas contra navios comerciais vulneráveis. O general Thomas Waldhauser, principal chefe militar dos EUA em África, afirmou que os ataques de piratas foram relatados na região durante o último mês depois de esse número ter caído para zero nos últimos anos.
“Algumas das razões têm a ver com a seca e a fome porque alguns dos navios atacados carregavam alimentos e petróleo”, afirmou. Os barcos atacados eram pequenos e “alvos muito lucrativos para os piratas”.
Os militares dos EUA aconselham as companhias transportadoras que sigam as directrizes de segurança e não baixem a guarda. “Houve cerca de meia dúzia de ataques, mas não estamos prontos para dizer que há uma tendência”, afirmou Thomas Waldhauser. O oficial norte-americano disse estar concentrado em garantir que a indústria de transporte marítimo comercial não se torne complacente.
Os piratas somalis começaram a realizar ataques em 2005, causando danos de milhares de milhões de dólares à economia global. Os novos ataques surgem depois de uma pausa de cinco anos na região, onde a pirataria atingiu proporções alarmantes durante o período de 2010 a 2012, atraindo para a região as marinhas dos Estados Unidos e de outras nações para uma forte campanha contra os piratas. Mas os altos funcionários norte-americanos dizem que esta situação ainda não constitui uma tendência preocupante.
O capitão da Marinha Richard Rodriguez, responsável por uma força militar dos EUA no Djibuti, disse que a pirataria “certamente aumentou” nas últimas semanas, mas esta não é uma missão para as suas tropas, que estão concentradas no combate ao terrorismo na região do Corno de África e no desenvolvimento das capacidades dos exércitos nacionais na Somália e em outros lugares da região. Ou seja, espera-se para os próximos tempos mais do mesmo a que vimos assistindo até agora.