Jornal de Angola

Carta aberta ao Osvaldo Gonçalves

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA |

Osvaldo, meu mano, Propriamen­te dito, eu não participei, de forma directa, na amarração da chuva que começou a chuviscar na passada sexta-feira, dia 28. Tanto a iniciativa, quanto a passagem à acção, foram da inteira responsabi­lidade da minha amiga Fátima. Pegou ao colo na criança mais pequena da casa, um puto de três anitos, levou-o para o jardim, pôs-lhe uma faca de cozinha nas mãos e ajudou-o a espetá-la no chão. Passados dez minutos, a chuvinha parou de vez. Aí, a farra do quintal da aniversari­ante, a mais velha Milu, arrancou com os melhores sembas da banda. Segundo nos confidenci­ou, a Fátima aprendera essa arte de amarrar a chuva com o jardineiro que trabalhou desde o tempo colonial na residência do pai dela.

Estava eu já cansado das passadas no mosaico do quintal da Dona Milu e me sentei à mesa, degustando um pincho de moela de frango, quando vejo ao meu lado o Fernando Martins com o

Jornal de Angola nas mãos, a ler “Deus também lê crónicas”. E bem ao lado direito do Fernando, vi Deus sentado noutra cadeira. Deus não sabe ler. Deus escreve direito por linhas tortas, mas não lê crónicas. O homem é que saber ler. Por isso, o Fernando lia a tua crónica e Deus “lia” o silêncio da alma do Fernando.

Naquela pausa da boda, revisitei os olhos rebobinado­s e o cabelo de carvão noctívago do man Martins na redação da revista Novembro, no tempo em que andávamos de camisa de fora e não possuíamos viatura própria, e o Fernando me deu a ler o primeiro jornal privado do país, a Patada, que tinha fundado no cubico.

Naquele tempo, na redação da Novembro, o Fernando Martins dava alcunhas a todos, e o Pinto Afonso virou (para quem ainda não esqueceu) o Pintógrafo. O resto dos nomes não sei, eu era apenas revisor de provas, a revista tinha de ter qualidade, hoje é que já quase ninguém liga ao português dos jornais e sai com cada um que é uma lástima de provocar uma dor muito grande no coração de quem é verdadeira­mente jornalista até ao fundo luminoso da alma lida.

Naquele tempo, o Fernando gostava bué de gozar com o sotaque da Ilda Rosa, porque ela tinha vivido uns tempos na Tuga e tinha engolido uma portuguesa, como se diz na gíria.

Naquele tempo, a redação se unidividia nos trumunos aos sábados e a Dona Antónia, mulher do Beto Gourgel, nos fornecia um volume de AC e pacotes de leite Lactiangol (passe a publicidad­e) e o director, José Oliveira, era mesmo o nosso papoite.

Naquele tempo, nos dávamos como irmãos, não sei se por causa da guerra bóer que nos aleijava o povo do Cunene e do Kuando-Kubango, ou se por causa de a revista se chamar o mês da independên­cia e isso brotar em nós o capim verdíssimo da irmandade, ou se era por não andarmos todos de carro nem usar fato e gravata, ou se era por causa de termos um coxito de kwanzas para vivermos, através do cartão de abastecime­nto, é pá, mo mano, eu não sei nada, tu que escreves crónicas que Deus não lê, deves saber melhor que eu.

Ali na festa da Dona Milu, olhei bem para o Fernando Martins (Deus já tinha ido embora) e “li” o coração dele. Me dizia: “ó pá, ó Mendonça, escreve aí na tua carta para o Osvaldo que eu me embarrei da vida, porque Luanda é a única capital do mundo onde não há um jardim público assim belo e grande como o jardim de Malanje. A Biker virou um antro de zungueiras e kinguilas, a comer com a mão pela mesma tijela o funge com fúmbua, o que até faz jus à nossa tradição, mas é sempre uma vil imagem de qualquer cidade capital. O Largo da Portugália foi tomado pela kinguila Georgina e amigas e pelos ardinas de chão. A capital precisa urgente de uma engenharia urbana que reverdeça o Miramar, o Alvalade e outras zonas verdes e ponha muitos baloiços até aos Ramiros, para as crianças brincarem. Hoje, onde é que a malta se pode encontrar para nos candandarm­os?”

Já de saída do quintal da Dona Milu, depois de ter assistido a dois milagres – o da amarração da chuva e a aparição do Martins – dei comigo a pedir-te a ti. que não és Deus, ó Man Osvaldo, um terceiro milagre: bom, o Fernando tem toda a razão, mas porque é que tu e o Lousada não saem daí do Cacuaco na mota dele com um saco de bom carapau e vamos todos pedir à alma do Ti Passos que restaure a Biker e no-los grelhe para nos reencontra­rmos, mesmo que eu já não beba finos, mas, é pá, posso tomar um chá de tília com mufete de carapau e posso vos tomar a vocês na caneca da minha alma cansada de perder os cambas de tarimba, um a um, sem sequer me dizerem adeus.

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