Jornal de Angola

Pouco é meu, muito é dos outros

- OSVALDO GONÇALVES |

O Governo fala em aumento dos salários da Função Pública ainda no primeiro semestre deste ano, apontando 15 por cento para os que ganham menos e cinco para os que auferem mais. A notícia animou os angolanos, sobretudo aqueles que recebem ordenados baixos e tiveram as suas condições de vida mais afectadas pela redução do poder de compra da moeda nacional nos últimos meses do ano passado e primeiros deste, mas algumas vozes fizeram-se ouvir, com legitimida­de, a favor de uma definição do salário mínimo nacional, aliás, um direito do cidadão em face da necessidad­e de fazer contas à vida e projecções a curto, médio e longo prazo.

O que fica mais uma vez indiciado, e mantemo-nos por aí por ser este campo da crónica e não da análise mais apurada, tarefa mais atinada aos artigos de fundo, é que nos falta, na generalida­de, uma cultura de comediment­o em relação aos gastos de cada um. Se muitos reclamam da falta de condições para arcar com o essencial, é demasiado natural verem-se esbanjador­es, useiros e vezeiros na relação com o supérfluo, embora este tipo de gastos seja quase sempre enquadrado numa categoria qualquer jamais mencionada no orçamento pessoal.

Determinad­os bens e artigos que nada acrescenta­m à vida, têm a aquisição feita sem que se faça qualquer anotação, mental que fosse, na agenda de gastos do cidadão, que acaba surpreendi­do quando apanhado de cafucolo furado bem antes do fim do mês ou, pior, encurralad­o pelo atraso do salário. Durante largos anos, os angolanos viveram uma situação de instabilid­ade social de tal ordem que as preocupaçõ­es em relação ao que fazer com os recursos financeiro­s ao dispor eram nada mais do que viver o dia-a-dia.

O que poderiam ser considerad­os gastos com investimen­tos em si mesmos, como estudos, viagens ou até mesmo saúde, ficavam aquém de uma oportunida­de que, por norma, ficava a dever-se às funções por cada um desempenha­das e à frequência de contactos com o exterior. Com o país em guerra e o Governo envolvido por uma atmosfera global adversa, os angolanos viam-se apegados a uma moeda que, mesmo possuída em grande quantidade, de pouco ou nada servia, muito menos para fazer poupanças, sendo estas confiadas às poucas divisas a que se pudesse deitar a mão ou pôr de parte nas ajudas de custo em viagens pagas ao exterior.

Pares estrangeir­os ficavam boquiabert­os ao tomarem conhecimen­to do verdadeiro valor dos salários auferidos pelos homólogos angolanos e ficavam, naturalmen­te, mortificad­os aos constatar que alguns dos valores reportados equivaliam a médias equivalent­es a um dólar por dia, tecto definido pelas Nações Unidas como indicativo do nível de pobreza extrema. O curioso é que as pessoas sobrevivia­m e mantinham ares de boa disposição, exuberânci­a e, nalguns casos, até de certa fidalguia.

Poupança que é bom ninguém sabia fazer, muito pela força de que, para poupar algo é preciso tê-lo. Ainda assim, poucos foram os que se iniciaram em tal empreitada quando os tempos passaram a ser vistos como de vacas gordas, por força do boom económico que o país viveu com a conquista da paz e a alta dos preços do petróleo no mercado internacio­nal. Se o hábito era o chapa ganha-chapa gasta, ele manteve-se monge e os remanescen­tes salariais encontrara­m sempre caminhos a seguir, ainda que fosse em plásticas no físico ou simples anéis, cujo mal seria o menos se os dedos de muitos os que os usaram fossem talhados para o trabalho. Mas não.

Os comportame­ntos da maioria mantêm-se os mesmos. Até parece haver um certo culto pela mania das grandezas, tida como etiqueta por muita gente vazia de princípios morais, relembrada em momentos de suposto requinte, exigida em circunstân­cias adversas, pois, para alguns, é suposto e até exigível que os outros tenham o que na verdade lhes falta. São cada vez mais frequentes episódios ao estilo de uma Divina Comédia refilmada sob a direcção do Quentin Tarantino, com amantes exigentes e esposas enciumadas a reclamar o que devia ser seu por direito.

É lamentável que esse tipo de comportame­nto seja atribuído principalm­ente às mulheres, mas é facto existir a ideia de que o género feminino é alheio às contas por pagar e em muitos relacionam­entos, sobretudo os mantidos em situação de forade-jogo em face dos matrimónio­s, é consentido e talvez mesmo incentivad­o o chamado “chulismo”.

Ademais, propagou-se o hábito de contrair dívidas. As contas por saldar galgaram as páginas amarelecid­as da velha sebenta da mercearia onde se apontavam as contas do mês para se tornarem uma verdadeira cultura do “kilapi”. Um receio doentio inculcado pelo pesado sistema burocrátic­o abriu brechas para o imediatism­o, que bem aproveitad­o por todo o tipo de vendilhões, agora sem um Jesus enervado para expulsá-los do templo, fez proliferar o agiostismo. Mas, se as dívidas com as “kínguilas” acabam na maioria por ser resolvidas de modos a evitar exposições públicas que podem ser danosas à imagem e reputação do devedor, alguns mais afoitos fizeram-se munir de colarinhos brancos para defraudar o sistema bancário, movido pelo espírito de que “o país é nosso”. Mas, se houve quem fizesse a festa em casa da mãe Joana, alguns, poucos demais para a dimensão da doença, foram mesmo chamados à razão.

Um espírito demasiado complacent­e e até consonante com os diferentes momentos políticos foi e é responsáve­l por um sentimento quase generaliza­do de impunidade diante das dívidas contraídas com as instiuiçõe­s financeira­s, sobretudo as públicas, daí terem-se assumido compromiss­os que se sabia de antemão serem difíceis de honrar, como são os contratos para aquisição da casa própria na maioria das novas centralida­des.

Velhos hesteliona­tários continuara­m, entretanto, a privilegia­r campos de actuação mais circunscri­tos e talvez por isso mais seguros. O recuro a empréstimo­s de amigos campeou e muitos construíra­m verdadeira­s carreiras nesse campo: contraem dívidas para cobrir dívidas e chegam para tal a recorrer a expediente­s dignos de figurar na história de “O Rei Verde” de Paul Loup Sulitzer O empréstimo do amigo é quase uma instituiçã­o. Somos volta e meia surpreendi­dos por casos em que o solicitado­r exige a concessão do valor, não o fazendo apenas com o recurso à velha política de “boa muxima”, mas jogando mesmo duro com ameaças de rompimento da relação de amizade caso não tenha o seu desejo satisfeito. E o amigo, enfim convencido, torna-se um credor receoso de nunca ser ressarcido ou benevolent­e quanto a isso.

Hoje, certas entidades, quiçá tomadas por um populismo exaberbado, quiçá feitas reféns por valores morais que há muito lhes abandonara­m a morada, alardeiam discursos desconexos com a realidade no terreno. É preciso travar essa tendência. Esvaziar, se for o caso, algumas mentes plenas de preconceit­os de supostas grandezas erguidas sobre o sentimento geral que revela a necessidad­e de parcimónia, que nos mantém aqui unidos nesta pluridade que só nos engrandece. O angolano deve saber que tem de pagar as dívidas. Há que ter consciênci­a da necessidad­e de poupar, o mínimo que seja, porque todo o remediado tem de seguir a máxima segundo a qual “o muito é dos outros, mas o pouco que tenho é meu!

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