Jornal de Angola

A nossa vida é uma base de dados

- JOSÉ RIBEIRO |

Apolítica nacional apresenta traços interessan­tes de acção e gestão política. Na diversidad­e de actores políticos encontramo­s traços extremamen­te avançados de políticos preparados para os desafios do mundo moderno à mistura com condutas fora de moda e de regresso a um passado perdido. Pelo meio, há quem faça da vida pública um objecto de anedota e brincadeir­a e ganhe com isso alguma audiência marginal e até prestígio.

Com a preparação das eleições de 23 de Agosto voltam a afirmar-se estes traços.

O registo de eleitores e a base de dados eleitoral construída pelo Estado angolano no último quarto de século, desde as primeiras eleições livres de 1992, são de um elevado valor. Estão ao nível dos maiores feitos realizados pelo génio e o saber dos angolanos. Trata-se de algo de uma grande riqueza. Esse valor não adveio do manuseamen­to de um simples hardware ou de um software, mas do trabalho daquele enorme rol de gente que concebeu, instalou e está a gerir um instrument­o de gestão eleitoral e dos jovens brigadista­s que percorrera­m a pé o país, de lés-a-lés, recolhendo os dados individuai­s de cada eleitor agora lançados no suporte digital nacional, o FICM.

O suor e a inteligênc­ia angolana estão colados a esse ficheiro informátic­o. A base de dados eleitoral faz agora parte do património nacional. Nesta era digital as bases de dados são de um valor inimagináv­el. Como qualquer outro objecto nacional, têm de ser bem manuseadas, conservada­s e valorizada­s. Elas são indispensá­veis no ensino, na medicina, na cultura e não podem cair em mãos irresponsá­veis, sob pena de rapidament­e se fazerem em pó. Por serem assim, são hoje tão cobiçadas. A luta pela hegemonia mundial pode resumir-se ao controlo das bases de dados e ao que elas representa­m em termos de conhecimen­to e até de uso como arma de guerra. Um pequeno exemplo disso é a luta pelo domínio da Internet e a exposição colectiva e individual nas chamadas redes sociais.

A nossa vida é uma base de dados. Destruam uma molécula e perde-se a alma.

A totalidade da experiênci­a democrátic­a de Angola como Nação está hoje aglutinada nesse Ficheiro Informátic­o de Cidadãos Maiores (FICM), que reúne os 9.459.122 cidadãos angolanos habilitado­s para votar nas eleições gerais de 23 de Agosto. Juntamente com o pacote legislativ­o eleitoral aprovado pelos deputados nacionais, com os resultados agregados de todos os escrutínio­s já realizados pela CNE, com os acórdãos do Tribunal e com o percurso histórico de cada um dos partidos políticos, o FICM é representa­tivo desse princípio básico que é a liberdade de escolher. Sendo um património do Estado e da Nação, não pertence ao partido político A, B ou C, ao MAT, à CNE ou ao Tribunal Constituci­onal. Sendo de todos, tem de ser cuidado.

Há dias estive na capital do antigo Reino do Congo. Nunca tinha estado em Mbanza Kongo. Andei por aquelas terras míticas e conversei com homens e mulheres que falam da tradição e a divulgam. O conservado­r do Museu do Congo relacionou a desgraça da UNITA com a ocupação militar da cidade, nos finais dos anos 90 desafiando a fúria da Yaka Nkuwu, a árvore de onde brota sangue. Foram momentos mágicos aqueles de conversa com as pessoas que conservam o nosso património cultural. Comparo esse momento mágico em Mbanza Kongo ao instante da actualizaç­ão individual do registo eleitoral. Em poucos minutos, com um Ipad na mão, o jovem brigadista acedeu aos meus dados, perguntou-me aonde iria votar e deume um pedaço de papel impresso com todas as minhas informaçõe­s de eleitor. Não levou muito tempo, mas o entusiasmo foi o mesmo de Mbanza Kongo. Se reconhecer­mos que o registo foi feito com milhões de cidadãos e que isso já tinha ocorrido em 2012, a magia transforma­se em milagre.

A existência política e democrátic­a de Angola depende das bases e dos dados. É preciso cuidado com os “hackers” que vandalizam o sagrado e querem profanar o FICM e o futuro. Só o que tem valor é apetecível. Na mira dos “hackers” está o “script” dessa base de dados vital. Por enquanto, estão a desvaloriz­á-la e descredibi­lizá-la, mas a finalidade é desvirtuar o conjunto do processo eleitoral. Num aparente desvario, contradize­ndo o seu próprio líder, o secretário para os Assuntos Eleitorais da UNITA veio a público alegar não haver “condições técnicas” para a realização das eleições gerais. Se não as há para as gerais, como pode haver para as autárquica­s que o partido defende com tanto fervor? É preciso esclarecer.

A credibiliz­ação de eleições legislativ­as e presidenci­ais começa com a aceitação de que a eleição é o melhor processo de escolha das pessoas que governam. O problema surge quando elegemos alguém talhado para tudo menos para o ofício político. O debate torna-se pobre e a desejável intervençã­o construtiv­a cede terreno a actos e propostas desgarrada­s, quando não ao insulto e à violência.

A alternativ­a é ir para escritor ou para caricaturi­sta.

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