Os sinais dos velhos tempos
Disse certo dia não sei quem, que a melhor forma de avaliarmos o tempo é olharmos ao nosso redor. Concordo. Quantas transformações acontecem em nós ou à nossa volta que o calendário não consegue registar? Por exemplo, é preferível, para o nosso orgulho, dizermos que temos 50, 60 ou 70 anos, do que nos mostrarmos com os cabelos brancos, rugas no rosto, ou com dificuldades de andar devido ao reumatismo ou outra dor qualquer, própria da deterioração das células, sinal dos tempos que não voltam mais.
Penso que a criatura que inventou o calendário devia ser um orgulhoso, disposto a esconder a fadiga derivada da idade, um daqueles que se sentem eternamente jovens para consolar o ego.
É sempre preferível mostrar que ainda temos cabedal, não vá sermos descartados feitos trapos sem utilidade, nem mesmo para fazer torcida de candeeiro de lata da oficina do Senhor Brandão (ou Velho Candeeiro, como carinhosamente o tratavámos), uma alma perdida no meu Cazenga do antigamente, mas que mostrou ser grande empreendedor, porque já naquela época, mesmo consumido pelo peso da idade, soube pôr em prática aquela que considero uma das frases mais inspiradoras de Henry Ford, de que “há um punhado de homens que consegue enriquecer simplesmente porque prestam atenção aos pormenores que a maioria despreza”.
De modo que o Velho, me refiro à aparência física, soube apostar em algo em que tinha vantagens comparativas e um mercado infinito. Era no tempo em que tudo o que se consumia vinha de fora, em latas, desde o tomate ao peixe, passando pelas frutas, o leite e o óleo alimentar. E mais: a luz eléctrica era privilegio de um punhado de pessoas e fábricas. O Velho construiu uma linha de produção de candeeiros de lata que, se fosse nos dias de hoje, com a globalização, seria, sem dúvidas, uma das fábricas mais produtivas e tecnologicamente mais avançadas do país ou mesmo do planeta e capaz de rivalizar ou mesmo a bater, em escala, o invento de Henry Ford. Aqueles pequenos artefactos iluminavam as nossas casas, as nossas vidas, os nossos sonhos. Muitos meninos do meu tempo, não apenas do Cazenga (grande parte faz questão de acrescentar doutor ao nome) deve a instrução por conta daqueles artefactos do Velho Candeeiro.
Dizia que era estranho como o tempo transformava as coisas. Olho à minha volta e vejo criaturas que parecem muitos eus, a chamarem-me pápá e eu a admitir orgulhoso, mas, ao mesmo tempo, confuso à procura do meu pai, da minha mãe e dos meus irmãos hoje distantes e só alcansáveis por uniteis, moviceis, Angola telecoms, whatsapps, facebooks ou por perigrinações planeadas com meses de antedência.
Na mesa, eu no lugar do meu pai e todos a dirigirem-se a mim. Uns contando como foi o dia, outros a expor as necessidades: o dinheiro para a escola, a despensa vazia, a luz quase a acabar, o gás ... enfim problemas que não eram meus. Que direi? Quem sou eu, afinal? o menino Receado, filho do Só Armindo e da Mama Rosa dos bolinhos ou uma criatura qualquer, perdida no tempo, nas páginas dos calendários?
A quantidade de amigos e pessoas conhecidas que perdemos ao longo da caminhada chegam para encher várias Cidadelas. Muitos, os nomes ainda ecoam nas nossas mentes. Há dias em que ainda acordo confuso, como se os tivesse encontrado na véspera. São os casos do Chitas e do José Cristovão. Ontem mesmo, ao mandar um email ao meu primo Cândido, por engano quase mandei para os dois. Mas depreesa percebi que não estavam online. De qualquer forma, não fico zangado. Sei que quando precisar entregar uma mensagem a vocês, meus amigos e camaradas de jornada, sei onde encontrar-vos.
Pode parecer estranho o tom triste que emprego nestas linhas com que inauguro, depois de um longo tempo de interregno, o meu contacto com os leitores. É que, quando olho ao meu redor e vejo as transformações, sintome cansado. Com o tempo, não com o calendário. Por isso, decidi voltar a escrever. Durante quase ano e meio fui fiel a este espaço, contando coisas do Cazenga, do meu bairro.
Semanalmente, às segundasfeiras, dividia a página com o falecido Padre Matumona Manomossi, um homem com H grande, que se dizia meu leitor e que me fez prometer que não parava de publicar crónicas. É por ele e por outros colegas que me pediram que escrevo agora, do Cazenga, é claro. Porque entendo que para escrever é preciso nos posicionarmos num ponto e olharmos o mundo a partir deste ponto. E o Cazenga é o meu local preferido. Pela primeira vez, este meu cantinho tem um nome: Pessoas & Coisas, numa referência e homenagem ao cronista e poeta Ernesto Lara Filho, para mim, o maior de todos os tempos. Pessoas & Coisas é mais uma homenagem a todos, leitores, colegas de jornada e amigos. Vocês não imaginam o quanto vos agradeço!