Carga tributária e Justiça social
Em que medida a acção da Administração Geral Tributária, no cumprimento das normas legais, está a ser prejudicial à actividade das empresas num ambiente económico que é já, em si mesmo, bastante adverso?
Tem vindo a ganhar corpo, especialmente nos círculos empresariais, a ideia de que a cobrança das dívidas fiscais tem provocado asfixia às empresas. E quando nos referimos à cobrança das dívidas, devemos considerar não apenas o imposto devido mas também multas e juros de mora decorrentes do atraso e de outros incumprimentos.
Esta constatação é observável nas sistemáticas reclamações percebidas junto da classe empresarial ante a acção da Administração Geral Tributária, no quadro da fiscalização e execução fiscal, dando-se, em particular, realce às exigências de garantias de idoneidade tributária respaldadas no Código Geral Tributário (CGT), cuja apresentação pelo contribuinte deve ser feita 15 dias depois de ter sido notificado pela Repartição Fiscal.
Na prática, e com base em todos os articulados legais, mormente o CGT e o Código das Execuções Fiscais, findo aquele período a AGT tem vindo a exercer o direito de penhora das contas bancárias, caso o contribuinte não apresente as garantias reais idóneas no valor da dívida fiscal uma vez que em Angola, na maior parte dos casos, as garantias reais, sobretudo as relacionadas com bens imóveis e prédios rústicos, não possuem títulos que atestem os direitos de propriedade, o que impede que, nestas circunstâncias, sejam consideradas como garantias idóneas.
Caso o contribuinte apresente as garantias idóneas e sejam aceites pela AGT, a legislação prevê um prazo limite de cinco anos de efeito suspensivo sobre a execução, caso haja uma acção em tribunal a contestar a existência ou o montante da dívida. Pode também o contribuinte proceder à regularização da dívida e demais custas e despesas associadas, em concertação com a administração de modo parcelar.
Há ainda quem considere que a acção legítima da AGT acaba por stressar os contribuintes, que passam deliberadamente a furtar-se ao cumprimento das suas obrigações fiscais. Atribuir à acção da AGT a responsabilidade pelo comportamento relapso dos contribuintes é, particularmente neste quadro, uma atitude que procura explicar o inexplicável – desculpas de maus pagadores. Uma empresa que se encontre em incumprimento fiscal e mantenha a sua actividade está a usufruir de um benefício ilegítimo – além de ilegal e em alguns casos criminal – que a coloca em situação de vantagem face às empresas concorrentes.
Parece-nos claro que, na actual conjuntura, não é a carga tributária que estará a obstaculizar a vida das empresas. Impõe-se por isso algumas reflexões:
Em primeiro lugar, a carga fiscal angolana é relativamente baixa. Aliás, devemos ter presente que um dos eixos da reforma tributária foi a sua redução. Imposto Industrial, IPU e outros sofreram reduções consideráveis da sua taxa aplicável, com destaque para a tributação dos lucros das empresas, cuja taxa geral se reduziu de 35 para 30 por cento, e para aqueles sectores de grande prioridade na agenda da diversificação económica do Executivo, como sejam os casos da agricultura, aquícolas, avícolas, pecuárias, piscatórias e silvícolas, onde a taxa é de apenas 15 por cento; Olhando para os números arrecadados com a taxa de circulação, rapidamente percebemos que a incidência fiscal é bastante moderada quando comparada com os países da região, como Namíbia ou África do Sul.
Em segundo lugar, em 2014, houve um perdão fiscal sobre as dívidas ao fisco até 2012. O período de 2012-2015 foi, como todos sabemos, de forte crescimento económico e nada fazia antever que os níveis do PIB fossem baixar ao ponto a que assistimos hoje. Nesta ordem de ideias, como perceber que empresas que beneficiaram do perdão fiscal em 2014, com mais-valias até 2015, apareçam com dificuldades para honrar os seus pagamentos a partir de 2015?
Em terceiro lugar, é verdade, porém, que a conjuntura macroeconómica, em especial o patamar já elevado das taxas de juro, contraiu o crédito e, por conseguinte, o investimento privado. Este ambiente de adversidade é ainda maior ante a escassez de produtos no mercado e a fraca diversidade económica. Continuamos a precisar de importar quase tudo, seja bens alimentares seja produtos manufacturados, e isso tem tido um preço considerável. Manter as Reservas Internacionais Liquidas num nível prudencial tem-se revelado um exercício muito exigente e há-de chegar o momento em que os gestores da política macroeconómica estarão confrontados com uma decisão sobre as taxas de câmbio. Nesta matéria, o Standard Bank e outros think tanks começam já a antever uma ligeira desvalorização no final de 2017.
Portanto, é falacioso dizer-se que é a carga tributária incidente sobre as empresas o factor de stress das suas condições económico-financeiras. A AGT está a fazer o caminho certo na justiça e na eficiência da colecta fiscal, aprimorando a sua relação com os contribuintes. Essa eficiência da máquina tributária esbarra, todavia, num cenário de ausência de cultura do pagamento de impostos, daí que uma relação mais directa da AGT com os contribuintes acabe por ser em alguns casos – que estão longe de ser a regra geral – interpretada como o exercício de alguma forma de pressão.
Ora, isso só pode ser um stress para aquelas entidades que sonegam informação. E, para mais, na actual tendência de reforço do uso das tecnologias de informação e comunicação, na aferição da matéria colectável, que conduzem a uma reforma profunda do sistema e, mais tarde ou mais cedo, à introdução do IVA, esta alegada “intromissão” da AGT nas contas das empresas será cada vez maior e menos contornável para quem não cumpre as suas obrigações perante o Estado, perante os seus concidadãos e perante as empresas que operam no mesmo mercado.
Por conseguinte, é relevante notarmos que a principal razão para a dificuldade das empresas é a falta de acesso às divisas e a impossibilidade de fazer importações ou pagamentos ao exterior. A AGT só aparece no fim da cadeia, quando houver lucro, pois, tudo o resto é dedutível.
O que parece portanto estar na ordem do dia é a necessidade de explicar melhor o papel fundamental que os impostos desempenham, como ferramenta determinante para que o Estado cumpra uma das suas missões mais nobres: redistribuir os rendimentos e garantir a todos os cidadãos o acesso, em igualdade de circunstâncias, a bens públicos como a saúde, a educação, a segurança, a defesa, a justiça, a habitação, ao saneamento básico, as infra-estruturas de transportes e, de um modo geral, a protecção social. É imperioso, isso sim, que a AGT trabalhe no sentido de alargar a base tributária, ou seja, colocar mais pessoas a pagar impostos e, nesta matéria, o espaço fiscal no sector informal é astronómico. É também importante que a despesa pública se ajuste à receita tributária e não persistirmos nos actuais níveis de endividamento, salvo para o que for estritamente necessário e comportável.
É esse certamente um dos maiores desafios que a AGT tem por diante: evitar o anátema que começa a pairar sobre os impostos, explicando a sua justa razão de ser, ao mesmo tempo que aperfeiçoa o aparelho tributário.