Jornal de Angola

A arte de mendigar

- JOSÉ LUÍS MENDONÇA |

Aqui há tempos, li algures uma notícia sobre um cidadão britânico que ficou muito rico em apenas três anos de mendicânci­a. Dizia a notícia que o referido cidadão era um jovem formado em artes cénicas e, em vez de actuar nos palcos, preferiu actuar ao ar livre, sem patrão, nem horário estabeleci­do. E o que fez o dito cujo?

Dominando muito bem a arte dramática, se vestia com farrapos, modificava completame­nte as feições e ficava ali, na rua, o chapéu no passeio com a boca para cima, a recitar as mais famosas peças e poemas do maior dramaturgo inglês, William Shakespear­e.

As pessoas paravam, boquiabert­as, de verem um homem andrajoso, um maltrapilh­o, detentor de tanto conhecimen­to cultural, património que orgulha qualquer súbdito da Rainha Elizabeth II. E ficavam, obviamente, com tanta pena de ver um talento daquela dimensão, perdido na vida, a pedir esmola. Logo, choviam para dentro do chapéu, não apenas Pences (moedas), mas a própria Libra em notas com a efígie da Rainha.

No prazo de três anos, o nosso fingidor de poeta acumulou uma fortuna consideráv­el. Comprou um castelo, um Rolls Royce, e vivia como um lorde. De manhã ia à caça do cumbu. À tarde descansava. À noitinha saía com as garinas e amigos.

Só que a Inglaterra é um pais onde o controlo das Finanças Públicas sobre o património da cada indivíduo é rigoroso. Ao comprar o castelo, teve de pagar os impostos. Ao pagar os impostos, a repartição fiscal não encontrou rasto do contribuin­te. Nem de salários, nem de outras fontes rendimento­s. Como é que este cidadão comprou o castelo?, interrogar­am-se as autoridade­s do fisco. Daí a penhorarem­lhe os bens, foi um passo. O nosso herói da rua dos pedintes confessou o crime e acabou na prisão.

Ora muito bem. Esta introdução serve apenas para vos alinhavar o tecido da crónica de hoje, que fala dessa arte milenar de mendigar. Deixemos a Grã-Bretanha e caminhemos devagar ali pelas bandas do Largo da Independên­cia. Observemos quem são os mendigos que ali proliferam, todos os dias, religiosam­ente de mão estendida em direcção às janelas das viaturas que param na rotunda, no sentido de quem vem do Largo das Heroínas.

Tem lá aquela mamã, bem anafada, sempre com a filha à ilharga, esta também bem nutrida, aquela mamã que cujo historial é um pouco parecido ao do nosso inglês que comprou o castelo, pelo dom de representa­r no palco do passeio. É uma senhora que começou há cerca de 15 anos, ali no Kinaxixe, quando ainda havia a praça naquela lugar. Caminhava apoiada num enorme cajado, e entortava de tal forma o corpo como se quisesse imitar um coqueiro torcido por forte ventania. Imitava um pêndulo a andar atrás dos automobili­stas do cruzamento junto ao viveiro de plantas do Kinaxixe. A miúda sempre atrás era ainda uma petiz. Hoje está uma rapariga feita, sempre com aquele olhar distante (presumo que sofre de alguma atrofia mental), e lá vai até hoje, levada pela mão da mãe, como peça de criar pena e angariar esmolas. A senhora continua a usar um vestido castanho e bem sujo, cabelos desgrenhad­os, tal como a menina. Quando acabam o serviço de pedir, depois da esquadra da polícia junto ao Jumbo, vestem trajos normais, a dona da menina compra um saco de rebuçados e lá vão, não sei para onde. Deixá-las ir, é melhor pedir que roubar, não as metam na prisão como ao “Shakespear­e” que comprou o castelo!

E depois, lá temos o casal de velhos, com os rostos cheios de mitos antigos, ele cego e a mais-velha e puxar o marido pela mão, bate aqui, bate acolá, uns abrem a janela da viatura e dão 50 kwanzas – miseráveis, quem disse que 50 kwanzas mata a fome de alguém? – outros nem se dão ao trabalho de abrir a janela.

E há aquela mulher linda, que põe um vestido muito cansado e leva uma criancinha ao colo, a pedir, a pedir, e aquela menina também linda que carrega um petiz de meses e já me conhece, nunca chega à janela do meu carro, porque eu sempre lhe digo: “A menina não estuda? Você não sabe que não pode trazer aqui essa criancinha tão pequena a apanhar este sol todo na cabeça?” São várias crianças, com pequeninos ao colo, servindo de isca fácil da esmola. Havia lá até uma mulher jovem com um bebé de cabeça enorme, sofria de hidrocefal­ia, aconselhei a jovem a levar o bebé ao hospital especializ­ado nessa doença, o largo à torreira do sol não é o local mais indicado para expor uma criança sofredora.

Tenho para mim que não se deve dar esmola, esmola não resolve nada, é um paliativo de curto prazo, o ataque à pobreza passa pela Assistênci­a Social do Estado. Conclui que quem dá humilha o ser humano que recebe e quem pede na rua se auto-humilha em público. Também conclui que quem sustenta os mendigos são os trabalhado­res, porque raramente os ricos andam nas ruas a conduzir.

E sei com a maior das certezas que lugar de criança é na escola e ali, no Largo da Independên­cia, estão a aprender essa triste arte de mendigar, enquanto expõem bebés de tenra idade ao flagelo do sol ardente de Luanda, e isso fere a minha sensibilid­ade, de modos que peço mui encarecida­mente à Senhora Directora do INAC que tome medidas para que nenhum mendigo leve mais esses bebés para o largo a servir de isca de esmolas. Quem quiser pedir, que peça, mas não pode nem deve servir-se de bebés para angariar tostões na rua. Aí o Estado é obrigado a intervir, Senhora Directora.

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