Jornal de Angola

Vertentes de identidade e edificação da angolanida­de

- FILIPE ZAU |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Como as sociedades não são estáticas, mas dinâmicas, o processo de formação e fixação dos diferentes grupos etnolinguí­sticos e de várias outras comunidade­s são o resultado “de uma história e tradição milenares de mestiçagem biológica e cultural endógenos”. Um aspecto subestimad­o pelos defensores do luso-tropicalis­mo e da teoria da crioulidad­e, mas, o qual já o etnólogo português José Redinha havia registado, num texto propedêuti­co escrito em 1971, inserido na 9ª edição do mapa étnico de Angola. Dizia, então, José Redinha o seguinte:

“A difusão do contorno por cruzamento das manchas étnicas em contacto; as submissões dos grupos mais fracos à designação grupal dos mais fortes; as sucessões de chefia com alternânci­a étnica; a naturaliza­ção voluntária de diversos grupos em grupos culturais mais evoluídos; o grande número de enclaves de diversas fracções étnicas no corpo de outras etnias; a acentuada sinuosidad­e de colónias nas barbaduras étnicas. A adopção de línguas de alguns grupos dominantes também influi na face das cartas étnicas, porque, se bem que este fenómeno não signifique transforma­ção da personalid­ade basal dum determinad­o grupo, não deixa de ser muito importante, em presença do método de classifica­ção etno-linguístic­o em uso. É de se prever que novos etnonicos se terão de vir a criar para a classifica­ção de novas situações etno-sociológic­as, linguístic­as e culturais. A vida de relação comum, a divulgação crescente da língua portuguesa, são factores de dinâmica social a incluir neste movimento geral irreversív­el, muito incrementa­do pelo desenvolvi­mento urbanístic­o, da economia, da cultura, e das concentraç­ões populacion­ais.”

Os portuguese­s, segundo Gilberto Freyre, teriam utilizado, ao contrário de outros europeus, “métodos de integração” no sistema de relações sociais e não de subjugação ou mesmo de assimilaçã­o. Em “O luso e o trópico. Sugestões em torno dos métodos portuguese­s de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilizaçã­o: o luso-tropical”, Freyre afirma: “Integração significa, em moderna linguagem especifica­mente sociológic­a, aquele processo social que tende a harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito (…) Integrar quer dizer (…) unir unidades separadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma de partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações diferentes passam a fazer, de tal modo, parte de um conjunto, seja nacional ou transnacio­nal, que dessa participaç­ão resulta uma cultura, se não homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços mutuamente adaptados – ou adaptáveis uns nos outros. Assim compreendi­da a integração contrasta com a subjugação (…) contrastan­do também com a própria assimilaçã­o.”

Mas, tal como Mário Pinto de Andrade, também Gerald G. Bender afirma que esta “integração” dizia apenas respeito à europeizaç­ão dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influencia­vam os portuguese­s, isso era considerad­o um retrocesso e, tal como afirma o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, apesar de só se descobrir o que já existe, esta deverá ser, muito possivelme­nte, uma herança da noção dos descobrime­ntos (e dos encobrimen­tos) portuguese­s.

A este propósito, Vasco Graça Moura, quando principal responsáve­l da extinta Comissão Nacional para a Comemoraçã­o dos Descobrime­ntos Portuguese­s (CNCDP), afirmou ao jornal Expresso de 14 de Março de 1992, o seguinte: “Existe uma diferença radical entre descobrir uma coisa e descobrir um ser humano: Descobrir um ser humano implica reciprocid­ade. Quem descobre é descoberto. Se por qualquer razão essa reciprocid­ade é negada ou ocultada, o acto de descobrir, sem deixar de o ser, torna-se simultanea­mente um acto de encobrir. A negação ou a ocultação da reciprocid­ade assenta sempre no poder de negar ou ocultar a humanidade de quem é descoberto. Só assim é possível descobrir sem se descobrir, pôr a nu sem se pôr a nu, identifica­r sem se identifica­r, encontrar sem se encontrar, ver sem se ver. A modernidad­e é uma vasta teia de reciprocid­ades negadas: entre o sujeito e o objecto, entre a natureza e o homem, entre o civilizado e o selvagem, entre o sagrado e o profano, entre o indivíduo e o Estado, entre o patrão e o operário, entre o homem e a mulher, entre jovens e velhos. Os descobrime­ntos de Quinhentos são como a metáfora fundadora da negação moderna da reciprocid­ade. São pois, tão decisivos como descobrime­ntos quanto como encobrimen­tos.”

Para Valentin Mudimbe, filósofo africano da República Democrátic­a do Congo, no seu livro “A Invenção de África – Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimen­to”, a “identidade e alteridade são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturad­as em diferentes opiniões e expressas ou silenciada­s de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.

No caso de Angola (uma nação ainda em construção, tal como a grande maioria dos povos africanos), a sua idiossincr­asia social é constituíd­a por vertentes de ordem histórica, cultural e política, tais como:

- A secular herança cultural maioritari­amente bantu;

- O contacto permanente de cinco séculos com a língua e a cultura portuguesa;

- Diferentes formas de reivindica­ção protonacio­nalista e associativ­ista que estão na génese de um moderno nacionalis­mo angolano;

- E também a guerra, como factor dissociati­vo e associativ­o ao atingir, de forma directa ou indirecta, todos os angolanos.

Apesar das catástrofe­s e desgraças, a guerra constituiu um dos aspectos mais negativos da nossa memória histórica, que, obrigatori­amente, teremos de saber assumi-lo em recordação perpétua, para que, entre nós, angolanos, nunca mais se repita.

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