Vertentes de identidade e edificação da angolanidade
Como as sociedades não são estáticas, mas dinâmicas, o processo de formação e fixação dos diferentes grupos etnolinguísticos e de várias outras comunidades são o resultado “de uma história e tradição milenares de mestiçagem biológica e cultural endógenos”. Um aspecto subestimado pelos defensores do luso-tropicalismo e da teoria da crioulidade, mas, o qual já o etnólogo português José Redinha havia registado, num texto propedêutico escrito em 1971, inserido na 9ª edição do mapa étnico de Angola. Dizia, então, José Redinha o seguinte:
“A difusão do contorno por cruzamento das manchas étnicas em contacto; as submissões dos grupos mais fracos à designação grupal dos mais fortes; as sucessões de chefia com alternância étnica; a naturalização voluntária de diversos grupos em grupos culturais mais evoluídos; o grande número de enclaves de diversas fracções étnicas no corpo de outras etnias; a acentuada sinuosidade de colónias nas barbaduras étnicas. A adopção de línguas de alguns grupos dominantes também influi na face das cartas étnicas, porque, se bem que este fenómeno não signifique transformação da personalidade basal dum determinado grupo, não deixa de ser muito importante, em presença do método de classificação etno-linguístico em uso. É de se prever que novos etnonicos se terão de vir a criar para a classificação de novas situações etno-sociológicas, linguísticas e culturais. A vida de relação comum, a divulgação crescente da língua portuguesa, são factores de dinâmica social a incluir neste movimento geral irreversível, muito incrementado pelo desenvolvimento urbanístico, da economia, da cultura, e das concentrações populacionais.”
Os portugueses, segundo Gilberto Freyre, teriam utilizado, ao contrário de outros europeus, “métodos de integração” no sistema de relações sociais e não de subjugação ou mesmo de assimilação. Em “O luso e o trópico. Sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical”, Freyre afirma: “Integração significa, em moderna linguagem especificamente sociológica, aquele processo social que tende a harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito (…) Integrar quer dizer (…) unir unidades separadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma de partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações diferentes passam a fazer, de tal modo, parte de um conjunto, seja nacional ou transnacional, que dessa participação resulta uma cultura, se não homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços mutuamente adaptados – ou adaptáveis uns nos outros. Assim compreendida a integração contrasta com a subjugação (…) contrastando também com a própria assimilação.”
Mas, tal como Mário Pinto de Andrade, também Gerald G. Bender afirma que esta “integração” dizia apenas respeito à europeização dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influenciavam os portugueses, isso era considerado um retrocesso e, tal como afirma o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, apesar de só se descobrir o que já existe, esta deverá ser, muito possivelmente, uma herança da noção dos descobrimentos (e dos encobrimentos) portugueses.
A este propósito, Vasco Graça Moura, quando principal responsável da extinta Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), afirmou ao jornal Expresso de 14 de Março de 1992, o seguinte: “Existe uma diferença radical entre descobrir uma coisa e descobrir um ser humano: Descobrir um ser humano implica reciprocidade. Quem descobre é descoberto. Se por qualquer razão essa reciprocidade é negada ou ocultada, o acto de descobrir, sem deixar de o ser, torna-se simultaneamente um acto de encobrir. A negação ou a ocultação da reciprocidade assenta sempre no poder de negar ou ocultar a humanidade de quem é descoberto. Só assim é possível descobrir sem se descobrir, pôr a nu sem se pôr a nu, identificar sem se identificar, encontrar sem se encontrar, ver sem se ver. A modernidade é uma vasta teia de reciprocidades negadas: entre o sujeito e o objecto, entre a natureza e o homem, entre o civilizado e o selvagem, entre o sagrado e o profano, entre o indivíduo e o Estado, entre o patrão e o operário, entre o homem e a mulher, entre jovens e velhos. Os descobrimentos de Quinhentos são como a metáfora fundadora da negação moderna da reciprocidade. São pois, tão decisivos como descobrimentos quanto como encobrimentos.”
Para Valentin Mudimbe, filósofo africano da República Democrática do Congo, no seu livro “A Invenção de África – Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento”, a “identidade e alteridade são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturadas em diferentes opiniões e expressas ou silenciadas de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.
No caso de Angola (uma nação ainda em construção, tal como a grande maioria dos povos africanos), a sua idiossincrasia social é constituída por vertentes de ordem histórica, cultural e política, tais como:
- A secular herança cultural maioritariamente bantu;
- O contacto permanente de cinco séculos com a língua e a cultura portuguesa;
- Diferentes formas de reivindicação protonacionalista e associativista que estão na génese de um moderno nacionalismo angolano;
- E também a guerra, como factor dissociativo e associativo ao atingir, de forma directa ou indirecta, todos os angolanos.
Apesar das catástrofes e desgraças, a guerra constituiu um dos aspectos mais negativos da nossa memória histórica, que, obrigatoriamente, teremos de saber assumi-lo em recordação perpétua, para que, entre nós, angolanos, nunca mais se repita.