Tecnologias de silêncios e alarvidades
O jovem, casaco azul escuro, curto, justo, tal qual colete de forças, calças a condizer, acima do tornozelo, entrou no restaurante, sentou-se, encomendou feijoada, pegou no telemóvel e nunca mais tirou os olhos dele.
O dia nascera quente, abafado, com nuvens tingidas de cinzento carregado a barrarem o sol. Que não se esforçava muito por aparecer. Limitava-se, de vez em quando, a espreitar, como que a querer saber como estavam as coisas cá por baixo. E a soprar sopros de calor. Mangonheiro, sentia-se nas suas “sete luas”, a antegozar as férias de cerca de três meses que o Cacimbo lhe há-de dar lá para o meio mês.
A jovem, lenço vermelho de seda ao pescoço, casaco preto, também curto e justo, calças a condizer, igualmente pelo tornozelo, botins de tacão alto, avança bamboleante pelo restaurante, roça os lábios pela face dele, forma de dizer “boa tarde” e senta-se. Também pede feijoada e duas colas com gelo e limão para ambos. Da bolsa de alças que trazia ao ombro tira um telemóvel. Imita-o, olhos fixos no aparelho. Em frente um do outro, não conversam. Comem com uma mão. A outra serve para os levar a mundos distantes que os separam.
A hora destinada para o almoço encontraram-se. Estiveram em frente um do outro. Não trocaram palavras, quanto mais ternuras. Comeram com uma mão. A outra ajudou-os a irem para mundos provavelmente longínquos e díspares. Pagaram e saíram do restaurante. Encostaram as faces em jeito de “até logo”. Cada um deles, por caminhos diferentes, seguiu para o emprego, onde hãode estar até mais logo, quando se encontrarem para se distanciarem ainda mais nas longas filas do trânsito, de cansaço, buzinadelas, impropérios, maldições à vida, fome, sede, sono.
O jantar que os espera em casa é “a sopa da semana” guardada na geleira e uma sandes empurrada por cola de lata bebida por palhinha. Naquela noite há futebol da UEFA. No sofá da sala, ele, calções e tronco nu, há-de vencer o sono e ver o jogo. No intervalo, abrir o computador portátil. Ela, no quarto, seminua, adormece na cama a meio da novela.
No balcão do restaurante, um cinquentão, pede, em voz alta, um “uísque velho, do mais velho que houver, duplo, com muito gelo”. O empregado olha-o admirado, mas cumpre à risca o princípio “o cliente tem sempre razão.”
Satisfeito o pedido, o homem vai sorvendo o líquido. Sempre que tira o copo dos lábios faz um esgar e deixa sair um sonoro “ah!” Veste calças de bombazina, cor de gajaja madura. Quando se encaminhar para a mesa hei-de de reparar que não lhe ficam pelo tornozelo, nem são apertadas. São largas, tanto que o casal jovem, sem esforço, cabia dentro delas.
Também ele tem telemóvel. Não para conversas surdas, nem entrar em mundos distantes, mas para falar alto e bom som o que lhe vai na alma e na gana. Por isso, ligou para casa a avisar que chega mais tarde, está num bar “a ver o jogo”, “não é preciso guardar jantar.”
Não sei quem o atendeu, mas a esta hora ainda deve estar com dores no ouvido tão alto falou. O homem do “uísque velho, do mais velho que houver, duplo, com muito gelo” não precisa de telemóvel. Sem ele a sua voz é audível de uma ponta a outra de Luanda. De tal forma, que houve clientes que protestaram por não conseguirem escutar o som da televisão.
O homem, que já trocara “o uísque velho, o mais velho que houver”, por finos “bem gelados, a partir os dentes, com espuma a escorregar no copo”, pode ser acusado de falta de maneiras, não saber o que bebe, sequer falar ao telemóvel, vestir mal, até de alarvidade, mas fez silêncio na sala com seu vozeirão arrastado pelo álcool: “o telemóvel é para falarmos, não para lhe olharmos à-toa parece estamos enfeitiçados.”