Jornal de Angola

Crónica de Cândido Bessa

- CÂNDIDO BESSA |

AYanny tem agora cinco anos e lembra-me muito a minha irmã mais velha, a Antónia. Prefere o pai à mãe. É bem o contrário de mim, que sempre tive na minha mãe a minha protectora natural. Não me lembro de ela me ter levantado a voz uma única vez, apesar de os meus tios, o Vicente e o Conceição, lhe tentarem sempre convencer que eu era um “hungado”, uma espécie mais avançada de miúdo traquina.

Quem nunca teve dúvidas das minhas diabruras era o meu pai, que tinha sempre uma receita para me pôr na linha. O castigo mais brando residia em erguer-me do solo pelas orelhas seguido de um pontapé que me projectava, feito um boneco, para uma distância de quase metro e meio.

Dava para ver que a minha mãe sofria em silêncio, contrariad­a com a atitude do marido, mas sem ousar enfrentá-lo. É que o meu velho, antigo atleta do Clube Desportivo da Textang, fazia tudo para mostrar o seu lado de machão e o dono de tudo aquilo. De modo que a minha velha preferia a ternura para acalmar a minha dor. Não precisava de dizer algo, bastava o olhar dela e eu me sentia recomposto. Lembro de tudo isso neste mês de Maio, depois de ver e ler vários depoimento­s sobre o Dia da Mãe, comemorado no dia 6. Hoje a minha velha continua no Cazenga, na mesma casa que me serviu de abrigo durante toda a minha infância. Já não se parece muito com o retrato da senhora de vinte e tal anos colocada na parede da sala de estar. Mas mantém o mesmo olhar protector ao receber os filhos que agora voltam para visitá-la de vez em quando. E faz questão de manifestar o mesmo carinho, afinal para uma mãe o filho não cresce, permanece criança e precisa sempre de protecção.

Hoje, onde quer que eu vá aquele olhar poderoso me acompanha. Em momentos de dor e de angústia, quando tudo parece não fazer sentido, aquele olhar materno me conforta e me cuida. Como te agradeço, minha mãe, por existires! Continuo a ser a mesma criança, a precisar do teu colo, do teu carinho, como ar para respirar.

Como disse uma vez o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei: Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho”. Lembro aqui, mãe, todo o sacrifício e empenho para dar um futuro ao filho. “Pai” é assim que ela me chama até hoje, por ter o nome do seu progenitor – “o Diano já está no quintal, não vais à escola?” E lá me precipitav­a da cama para me aprontar. Recordo aqui, também, um episódio de infância. Regressáva­mos da escola, eu e o meu amigo Diano, debaixo do sol abrasador do meio-dia da nossa infância, que não tem o mesmo esplendor do sol deste tempo.

A minha mãe na rua com a mão envolta em gazes brancas salpicadas com mercurocro­mo. Um rasgo que quase cruzava a palma toda, causada por uma lâmina que esqueci no bolso do calção. Era no tempo da caça aos pardais e às rolas, no pomar do velho Kamuzonge. Outra pessoa teria aproveitad­o a ocasião para descarrega­r no filho faltoso uma valente surra para recordar a vida inteira. Mas ela não. Como sempre: “Pai, a lâmina ia me cortar o dedo”. E pede-nos para ir almoçar, que a comida estava pronta!

É de ti que eu lembro agora, mãe. Ainda hoje me emociono com a sua bondade. Quando era pequeno e repetias aquela frase “onde come um, comem dois”. Sem entender bem o significad­o, na altura a frase mais me parecia o refrão de uma canção qualquer muito popular na sua juventude. Na nossa casinha de pau-a-pique, no Cazenga, a hora do almoço que mais parecia o refeitório de uma empresa ou de um internato. A minha velha, além de nos sustentar a todos ainda nos deu escola. E nunca ouvi dela qualquer queixa ou reclamação em relação ao peso da responsabi­lidade. A velha sabia que a grandeza de um homem de família depende, em grande medida, da coragem de criar os seus. Era assim no Cazenga do meu tempo. Cada casa era, de facto, uma parte da grande família. Éramos uma comunidade, como partes de um mesmo corpo que se complement­am, naturalmen­te. Era um tempo em que a criança tinha sempre ao pé um pai, um padre e um professor .

Gosto de percorrer os becos, passar pelos caminhos do antigament­e, na esperança de encontrar o menino que fui outrora.

Alguém certamente virá dizer: é o filho da mana Rosa, do mano Armindo. E aí renasce o menino franzino, de calções brancos, de seda, com riscas azuis, feitos nas Confecções Faz Tudo a jogar à bola na Petrofina. E a minha mãe, com a sua segunda classe do colono, conhecedor­a de ditongos como ninguém, a gritar pela hora da escola:

– Pai, (era assim que me tratava, por ter o nome do progenitor dela) vamos para a escola, senão vais virar mecânico! Não queres ser doutor?

E eu apavorado, com medo de sujar a roupa com óleo de carro e a sonhar com uma bata branca e o estetoscóp­io ao pescoço.

Ainda hoje sinto ter desobedeci­do à minha mãe. Outro dia, a minha irmã Tetinha chegou a chorar porque a velha estava a sentirse mal e levaram-na ao Hospital Américo Boavida. Num instante estou nos corredores do hospital e emociono-me com aquele desfile de batas brancas à volta da minha velha e ela, no auge do seu sofrimento, mas com um sorriso cúmplice, próprio de uma mãe carinhosa que perdoa ao filho faltoso, a apertar a minha mão. Vejo nela aquele olhar afectivo dos meus tempos de menino, quando me dizia: –“Pai, está na hora de ir à escola, senão vais virar mecânico. Não queres ser doutor?”

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