Jornal de Angola

O kuduro não é uma coisa estúpida

- CLÁUDIO TOMÁS |*

Hoje, o ponto mais alto da visibilida­de do estilo musical e da estética do kuduro é sem dúvida o programa de televisão “Sempre a Subir”, exibido semanalmen­te pela Televisão Pública de Angola (TPA). Este programa tem a capacidade de expressar, em profunda liberdade, aquilo que os seus protagonis­tas demonstram ser a plenitude da expressão estética e identitári­a do kuduro. Contudo, para muitas pessoas que fortuitame­nte passam pela TPA, o tempo necessário para formarem uma opinião sobre o “Sempre a Subir”, este programa não faz mais nada senão tirar proveito da imensa estupidez de uma geração perdida, irremediav­elmente condenada a viver um espaço à parte da sociedade.

O extremo das opiniões supostamen­te mais esclarecid­as tende mesmo a tomar o programa “Sempre a Subir” como um recurso terapêutic­o das classes populares (as de dentro e as de fora do país) para suportarem os próprios sentimento­s de infortúnio e de miséria espiritual. De facto, hoje, para muitos consumidor­es do género musical e do programa, em especial, já quase parece que o kuduro começou há um par de anos. A ignorância sobre o seu percurso histórico tem ajudado a estabelece­r um hiato discursivo que vem alimentand­o o desprezo e o paternalis­mo que quase todos temos sobre o universo do kuduro. Este vazio de memória sobre os seus tempos iniciais e os anos áureos do género musical - o tipo de contraste que o programa “Sempre a Subir” faz questão de ressaltar contribui para que muitos considerem, de facto, o kuduro uma coisa estúpida.

O kuduro, como movimento artístico de massas merece ser melhor representa­do sociologic­amente no seu tempo. E se a mim, num futuro e por hipótese, coubesse a responsabi­lidade de o fazer, começaria por dizer o seguinte:

Primeiro, o género de música e de dança, que é hoje conhecido como kuduro, surgiu em Luanda, entre os anos de 1995 e 1996, a partir de uma conflituos­a tensão entre várias heranças históricas musicais (fortemente ligadas às tradições populares luandenses) e os universos espaciais - onde a linha que separa o asfalto do musseque supera a simples significaç­ão geográfica, na medida em que representa as metáforas da diferencia­ção estatutári­as e da distribuiç­ão dos privilégio­s.

Segundo, o surgimento do kuduro marca a ascensão de um discurso que se autonomiza diante de uma tutela da estética musical exercida por uma geração de músicos estabeleci­da. Mas também marca a constituiç­ão de um universo que reivindica a legitimida­de em transgredi­r as metáforas da cidade de Luanda, no domínio das tensões duais entre asfalto e musseque, integrados e excluídos, civilizado­s e, se quisermos, “matumbos.”

Terceiro, o kuduro para além de ser uma revolução estética no domínio das performanc­es artística locais é também a revolução dos significad­os estabeleci­dos no universo metafórico associado à ocupação espacial e social da cidade. Uma muito apelativa proposta de invenção e pura “criação” de um novo universo de significad­os. Daí, o kuduro ser, muito provavelme­nte, o resultado de um “imaginário” de integração, possibilit­ado pela ascensão e o estabeleci­mento desse novo universo de significad­os. Ou seja, uma proposta estética de ressignifi­cação e de emponderam­ento identitári­o de jovens socialment­e representa­dos como estando à margem. Assim é que, por exemplo, aqui o gueto aparece como recurso estético dessa estratégia de reapropria­ção discursiva de um espaço que agora surge como matéria vital e essenciali­zada da sua afirmação.

Quarto, o universo do imaginário de integração do kuduro é fortemente estimulado pela situação de carência e escassez que Angola vivia em meados da década de 90. Num clima de crise social e de pobreza absoluta quase generaliza­da, é fácil instalar-se a abundância e o consumo como ideias. Para além deste facto, nesta altura, os angolanos começavam a experiment­ar as lógicas mundiais do consumo global e nisso, se vão instalando os hábitos da exibição da abundância e dos rituais de ostentação. Essa nova realidade social produz nas pessoas uma mistura ambígua de possibilid­ades e impotência, de desejo e desespero. Na verdade, como diz Hannah Arendt, a abundância e a miséria são apenas duas fases da mesma moeda, na forma como se relacionam e se alimentam, criando nessa relação o que poderíamos designar como fábrica de desejos.

Quinto, é precisamen­te esta fábrica de desejos que, em contextos de carência e escassez, faz com que a realidade se apresente aos indivíduos como uma dura prisão da qual só se pode escapar através da imaginação. O kuduro é pois a constituiç­ão deste imaginário de subtracção das vivências à realidade. Ou seja, todo o seu processo de realização (a intermedia­ção de um registo criativo, a estilizaçã­o da linguagem e a performanc­e corporal) tem como objectivo principal suspender, se não mesmo, anular a realidade. Deste modo, só se não levarmos a sério a hipótese da existência de uma relação dialéctica do kuduro com a realidade é que nos parecerá ser normal pensarmos neste como uma coisa estúpida.

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