O kuduro não é uma coisa estúpida
Hoje, o ponto mais alto da visibilidade do estilo musical e da estética do kuduro é sem dúvida o programa de televisão “Sempre a Subir”, exibido semanalmente pela Televisão Pública de Angola (TPA). Este programa tem a capacidade de expressar, em profunda liberdade, aquilo que os seus protagonistas demonstram ser a plenitude da expressão estética e identitária do kuduro. Contudo, para muitas pessoas que fortuitamente passam pela TPA, o tempo necessário para formarem uma opinião sobre o “Sempre a Subir”, este programa não faz mais nada senão tirar proveito da imensa estupidez de uma geração perdida, irremediavelmente condenada a viver um espaço à parte da sociedade.
O extremo das opiniões supostamente mais esclarecidas tende mesmo a tomar o programa “Sempre a Subir” como um recurso terapêutico das classes populares (as de dentro e as de fora do país) para suportarem os próprios sentimentos de infortúnio e de miséria espiritual. De facto, hoje, para muitos consumidores do género musical e do programa, em especial, já quase parece que o kuduro começou há um par de anos. A ignorância sobre o seu percurso histórico tem ajudado a estabelecer um hiato discursivo que vem alimentando o desprezo e o paternalismo que quase todos temos sobre o universo do kuduro. Este vazio de memória sobre os seus tempos iniciais e os anos áureos do género musical - o tipo de contraste que o programa “Sempre a Subir” faz questão de ressaltar contribui para que muitos considerem, de facto, o kuduro uma coisa estúpida.
O kuduro, como movimento artístico de massas merece ser melhor representado sociologicamente no seu tempo. E se a mim, num futuro e por hipótese, coubesse a responsabilidade de o fazer, começaria por dizer o seguinte:
Primeiro, o género de música e de dança, que é hoje conhecido como kuduro, surgiu em Luanda, entre os anos de 1995 e 1996, a partir de uma conflituosa tensão entre várias heranças históricas musicais (fortemente ligadas às tradições populares luandenses) e os universos espaciais - onde a linha que separa o asfalto do musseque supera a simples significação geográfica, na medida em que representa as metáforas da diferenciação estatutárias e da distribuição dos privilégios.
Segundo, o surgimento do kuduro marca a ascensão de um discurso que se autonomiza diante de uma tutela da estética musical exercida por uma geração de músicos estabelecida. Mas também marca a constituição de um universo que reivindica a legitimidade em transgredir as metáforas da cidade de Luanda, no domínio das tensões duais entre asfalto e musseque, integrados e excluídos, civilizados e, se quisermos, “matumbos.”
Terceiro, o kuduro para além de ser uma revolução estética no domínio das performances artística locais é também a revolução dos significados estabelecidos no universo metafórico associado à ocupação espacial e social da cidade. Uma muito apelativa proposta de invenção e pura “criação” de um novo universo de significados. Daí, o kuduro ser, muito provavelmente, o resultado de um “imaginário” de integração, possibilitado pela ascensão e o estabelecimento desse novo universo de significados. Ou seja, uma proposta estética de ressignificação e de emponderamento identitário de jovens socialmente representados como estando à margem. Assim é que, por exemplo, aqui o gueto aparece como recurso estético dessa estratégia de reapropriação discursiva de um espaço que agora surge como matéria vital e essencializada da sua afirmação.
Quarto, o universo do imaginário de integração do kuduro é fortemente estimulado pela situação de carência e escassez que Angola vivia em meados da década de 90. Num clima de crise social e de pobreza absoluta quase generalizada, é fácil instalar-se a abundância e o consumo como ideias. Para além deste facto, nesta altura, os angolanos começavam a experimentar as lógicas mundiais do consumo global e nisso, se vão instalando os hábitos da exibição da abundância e dos rituais de ostentação. Essa nova realidade social produz nas pessoas uma mistura ambígua de possibilidades e impotência, de desejo e desespero. Na verdade, como diz Hannah Arendt, a abundância e a miséria são apenas duas fases da mesma moeda, na forma como se relacionam e se alimentam, criando nessa relação o que poderíamos designar como fábrica de desejos.
Quinto, é precisamente esta fábrica de desejos que, em contextos de carência e escassez, faz com que a realidade se apresente aos indivíduos como uma dura prisão da qual só se pode escapar através da imaginação. O kuduro é pois a constituição deste imaginário de subtracção das vivências à realidade. Ou seja, todo o seu processo de realização (a intermediação de um registo criativo, a estilização da linguagem e a performance corporal) tem como objectivo principal suspender, se não mesmo, anular a realidade. Deste modo, só se não levarmos a sério a hipótese da existência de uma relação dialéctica do kuduro com a realidade é que nos parecerá ser normal pensarmos neste como uma coisa estúpida.