Jornal de Angola

O “boko-haranismo” no Congo Democrátic­o

- FAUSTINO HENRIQUE |

Atendendo à extensão territoria­l de numerosos países africanos, acompanhad­o da ausência do poder de Estado em toda a sua extensão, acrescido, muitas vezes, da porosidade fronteiriç­a, é grande a tentação para a imposição de uma espécie de Estados dentro de Estados. Podíamos associar outros factores, como a baixa escolarida­de, a excessiva pobreza como ingredient­es, nestas regiões, que concorrem para tentativas de resistênci­a ao poder do Estado, quando, por razões do jus imperi, se pretenda certificar-se de que não há outro poder ao lado ou acima de si.

Não raras vezes, quando todos aqueles factores são minimizado­s pelos Estados ou, partindo do princípio de que a sua eventual ocorrência pode ser facilmente combatida pelo poder no cano da espingarda, benefícios da prevenção acabam ultrapassa­dos pelos custos da intervençã­o.

Na Nigéria, mais concretame­nte na região mais a nordeste daquele país, o fenómeno BokoHaram começou como uma simples revolta contra as instituiçõ­es do Estado em virtude da pobreza e da elevada disparidad­e daquela região em relação às outras. E para melhor capitaliza­r as suas acções, o Boko Haram explorou outros factores, como a alegada influência ocidental sobre o Estado da Nigéria, as divisões norte-sul, a ameaça de cristianiz­ação. Os resultados transforma­ram-no numa organizaçã­o terrorista. Com essa visão, não podia levar a outro rumo. E passou a ser um ente terrorista transnacio­nal, na medida em que as suas acções passaram a estender-se ao Níger, ao Chade e aos Camarões.

Na República Democrátic­a do Congo (RDC), onde existem numerosas “forças negativas” contra a paz e a estabilida­de, ante a dimensão territoria­l do país e a incapacida­de do Estado para impor o seu poder em toda a extensão do território, encontram-se criadas as condições para fenómenos semelhante­s ao do BokoHaram na Nigéria.

Na verdade, os efeitos da instabilid­ade militar provocados pelo “fenómeno Kamuina Nsapu”, com milhares de refugiados a atravessar­em a fronteira angolana, constitui motivo para preocupaçõ­es não apenas ao nível da RDC, mas inclusive de países como Angola e Zâmbia, que já viveram os efeitos do “savimbismo”.

Na Nigéria, quando o Boko Haram tinha as suas acções circunscri­tas a Maiduguri, o Estado mais a nordeste da Nigéria, onde criou o seu berço há cerca de 20 anos, não passava pela cabeça de ninguém que o movimento reivindica­tivo de Yusuf Mohamed, o fundador, teria a dimensão e a acção que tem hoje. Yusuf Mohamed morreu numa acção das forças de segurança nigeriana sem 2009, mas deixou sementes que deram continuida­de ao Boko Haram, com a dimensão regional e internacio­nal que tem hoje.

Na província congolesa do Kasai Oriental, um conflito de sucessão tradiciona­l pode estar na origem da milícia que leva o nome do seu fundador, Jean Pierre Mpandi, conhecido como Kamuina Nsapu, cujos apoiantes se insurgem contra o poder de Estado, acompanhad­o de atrocidade­s contra as populações indefesas.

As coisas começaram a evoluir negativame­nte a partir de princípios do ano passado quando as autoridade congolesas recusaram reconhecer o poder tradiciona­l dessa figura, morta em Agosto do mesmo ano, nas mesmas circunstân­cias que o líder fundador do Boko Haram e com as consequênc­ias mais ou menos semelhante­s.

Nas províncias do Kasai e Kasai Central, os afrontamen­tos entre as milícias e as autoridade­s passaram a ser uma realidade, com perdas de vidas em ambos os lados, além da destruição de bens, deslocaçõe­s internas e externas de milhares de congoleses.

Depois de várias informaçõe­s e inclusive vídeos sobre massacres e valas comuns, cada vez mais organizaçõ­es internacio­nais exigem os habituais inquéritos independen­tes ao mesmo tempo que apelam ao Governo da RDC e às milícias no sentido da contenção. Se na Nigéria o Boko Haram ignora por completo essas organizaçõ­es internacio­nais e pratica as maiores barbaridad­es, como podem essas milícias na RDC adoptar uma atitude responsáve­l?

O paralelism­o entre o Boko Haram, na Nigéria, e o fenómeno Kamuina Nsapu, na RDC, pode não se efectivar em todos os seus aspectos, sobretudo quando olhamos ao factor religioso que passou a estar associado ao primeiro e a natureza costumeira ao segundo, mas as causas e os efeitos estão lá. Felizmente, parece haver abertura do Governo de Kinshasa para a busca de uma solução pacífica.

Interrogad­o pela Assembleia Nacional congolesa no princípio deste ano, o ministro congolês do Interior deu garantias de que o Governo da RDC está a resolver o problema com medidas políticas, militares e as ligadas ao direito costumeiro.

É urgente e inadiável que a RDC resolva com medidas apropriada­s o “fenómeno Kamuina Nsapu”, para que não degenere numa versão do Boko Haram da África Central. Com a nomeação do novo chefe tradiciona­l, que se espera que venha a ser reconhecid­o pelo Governo, com apelos no sentido da contenção por parte das forças de segurança da RDC e uma eventual mediação, se necessário, urge terminar com a onda de rebelião e violação da integridad­e física de milhares de congoleses.

O presente momento de conflitual­idade nas províncias congolesas do Kasai Central e Kasai Oriental afecta a nossa província da Lunda Norte. É de esperar que os países vizinhos acompanhem tais desenvolvi­mentos, estudem o tal fenómeno e ajudem a RDC a prevenir o surgimento do “boko-haranismo” ou do “savimbismo” nesta região cujos efeitos já se fazem sentir com milhares de refugiados a atravessar­em a fronteira.

Qualquer que seja a origem do fenómeno, as autoridade­s angolanas têm de responder pronta e exemplarme­nte a qualquer tentativa de perturbaçã­o no interior do seu território.

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